Já passava das seis horas da tarde quando pararam; o sol que já começava a se esconder por detrás do espigão mestre, embora não mais exibisse o seu disco por inteiro, ainda mostrava a força da sua pujança: emitia uma claridade tão intensa que desafiava a escuridão da noite que se aproximava. Esta, por sua vez, não tinha pressa, aguardava com serenidade a sua hora de dormitar a natureza com a sua presença, sabia que era uma questão de tempo o término do lusque-fusque.
Nestas horas, não se sabe bem porque, os viajantes que percorrem os gerais do sertão parece que são atacados por um banzo que não tem explicação razoável, tendo em vista que todo aquele eito sem fim lhes pertence.
Eram três os cavaleiros que estavam cavalgando desde manhã cedo, campeando um garrote nelore que fez uma arribada quando o gado já estava chegando ao curral; embora o trabalho de procurar rês extraviada possa parecer monótono, os peões gostam deste serviço, pois nestas horas, andando de “pareio” e mantendo a marcha na mesma toada lenta, conseguem colocar o proseado em dia.
Do local onde pararam dava para avistar a sede da fazenda; Batistão tomou a iniciativa de dar a voz de comando:
– Vamos descansar um pouco, esperar escurecer para valorizar nosso serviço junto ao patrão; os outros dois concordaram, apearam dos seus cavalos, prenderam as rédeas em um toco de pau e se sentaram nos respectivos calcanhares.
Boizinho igual a este não serve de “jeito maneira” para uma junta de boi de carro: – é muito nervoso, até um pouco azaranzado, afirma o Batistão sem olhar para os companheiros e com ares de entendido no assunto – pra dizer a verdade, boi nelore não serve para puxar carro de boi, prá mim só serve o zebu ou o caracu.
Na hora de atrelar o carro pode ser um sofrimento, se os bois não são de serventia; “encangar” boi que te conhece pela voz é café pequeno, basta um gritinho, sem exagero e uma chacoalhada das argolas da vara de ferrão – encosta maiado! Arruma barroso! “Endireita” matão! e os bichos vão chegando; nesta hora o candeeiro, o menino-guia, enlaça a soga nas aspas da parelha e, nos finalmente, prende o cambão. Tempo bom!
Os companheiros escutavam o proseado do Batistão no maior silêncio, esperando que ele continuasse o seu lengalengar que sabiam ser demorado; Batistão estava orgulhoso por ser observado, falava com sentimento e com o olhar perdido no horizonte; olhou para os dois companheiros, deu uma revirada na aba do chapéu e continuou:
– Deracino, eu sei que já lidou com carro de boi, foi carreiro, num sei se o Léozinho já; acho que não tem coisa mais bonita do que o cantar de um carro de boi de seis a oito juntas, carregado de milho na espiga; se estiver entardecendo e um ventinho sem valentia, sem assobio, vier batendo de manso na cara do carreiro este não sabe se presta atenção no barulho das folhas das árvores, no canto dos passarinhos que procuram, junto com o companheiro, o local de pouso ou na afinação da melodia que vem do jeremiar das rodas do carro cantador – ehn-ohn... ehn-ohn...
Hoje em dia tem pouco carro de boi por estas bandas, na verdade até o boi da raça zebu esta escasseando, num sei onde o mundo vai parar, mas que dá saudade, isto dá; da mesma maneira que a rapaziada hoje em dia inventa moda com as motocicletas barulhentas e enfeitadas, nós, do nosso tempo, “enfeitava” o carro de boi e caprichava no seu estilo de cantar.
Minha mulher não gosta que fale, fica meio envergonhada, porém acredito que ela só enrabichou em mais eu, por causa do cantado do meu carro de boi; vou explicar, porque sei que vocês estão querendo saber.
Era um dia de festa na casa dela, era um mutirão que o seu pai, o finado Marrequinho, organizou para capinar o seu milharal; convidou um mundéu de gente e eu que já estava de “zóio” no pedaço de mau caminho da filha dele, não podia faltar.
Combinei com alguns companheiros carreiros e resolvemos chegar todos juntos, eu puxando o grupo; eram seis carros de bois, cada um com seis juntas, todos enfeitados com fitas coloridas que ficavam esvoaçando no ar; de longe dava parecença de ser um bando de maritacas batendo asas e tentando imitar o cantar do cocão.
Escolhi os companheiros “a dedo”, de acordo com a espécie da madeira do cocão, para não repetir o mesmo cantar; o meu carro tinha um cantar parecido com uma gaita, alternado com a imitação do canto da juriti; os outros foram colocados intercalados, um imitava um assobio, outro era o estradeiro que é um canto forte e continuado, “aporem”, sem mudar o tom e que fazia fundo com o resto da orquestra.
Eu, pessoalmente, fiz a afinação de “prima e bordão”, com arrocho ou folga das cunhas do cocão e principalmente do chumaço que calça a cheda e sempre dei preferência para o eixo feito de pau-d’arco, pau-pombo e o de sucupira, que era o meu favorito, principalmente se nascido em grotas.
Como era festa, escolhemos, para enfeitar nossa “papagaiada”, apenas um menino como candeeiro que corria de um carro para o outro e, nestas corridas, as fitas de várias cores que enfeitavam seu chapéu, tremulavam com o vento, untando as “cantadeiras”de acordo com a necessidade; a qualidade do azeiteiro, que ficou no recavém do meu carro, ficou por minha conta, usei somente “óleo de coco da Bahia” que deixa o canto mais sonoro.
Para dizer a verdade, estava feliz; ainda tive fôlego, quando chegamos bem na frente da casa do Senhor Marrequinho, fiquei de pé na mesa do carro, falei sem olhar para “ela”:
De longe eu vim
Participar deste mutirão
Quando voltar levo saudade
Aqui deixo meu coração.
Todos notaram que Batistão deu uma engasgada, podia-se ver que seus olhos estavam rociados de lágrimas!
(Hélio Moreira, membro da Academia Goiana de Letras, Academia Goiana de Medicina, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)