Não se pode limitar o direito a uma corrente previamente eleita e determinada, porque ele se articula com todas as manifestações e variantes de um processo histórico. Na visão positivista, o direito se reduz a um conjunto de regras, doutrinas e jurisprudências que estabelecem um sistema coerente e invencível de concepções dogmáticas, sustentado por uma lógica matemática que preside a teoria geral do direito, e esta, por sua vez, padronizando todos os compartimentos específicos e estabelecendo um objeto comum aos diversos sistemas jurídicos.
O ensino jurídico entre nós tem-se limitado a essa visão dogmática, de regras preestabelecidas, não levando em consideração a dimensão histórico-crítica do direito. Dentro da dogmática jurídica, realiza-se apenas um trabalho de mera descrição lógico-sistemática das normas jurídicas positivas, reconhecidas como de valor cientifico por força de sua organização sistemática, abstraindo-se, no entanto, a experiência histórica e o contexto em que se plasmam as normas sociais.
Nessas circunstâncias, o direito acaba se constituindo num sistema fechado de regras abstratas, na dependência de valorações para sua aplicabilidade prática. As valorações que lhe são conferidas refletem, no fundo, a ideologia dominante transferida à aplicação das leis, e não à visão do direito como um todo. A tendência cientificista que se desenvolveu a partir do século vinte, tanto no campo da natureza quanto dos conhecimentos exatos, afetou também o direito na forma do positivismo sistemático, conferindo-lhe um caráter tecnológico que não condiz com a sua característica de ciência social.
Daí os ataques que a dita ciência do direito vem sofrendo na sua forma dogmática, já sendo, por isso, considerada até mesmo uma falsa ciência. É o que se deduz do ponto de vista de Kirchmann (segundo Plauto Faraco, obra já referenciada em artigo anterior), ao criticar, sobretudo o papel da jurisprudência, quando afirma: “Na medida em que a ciência faz do contingente seu objeto, ela própria torna-se contingência”. E deduz, ironicamente: “Três palavras retificadoras do legislador convertem bibliotecas inteiras em lixo”.
TRÊS DIMENSÕES
BÁSICAS
Para que o direito prevaleça como ciência, na sua epistemologia própria, necessário é que se despenda da dogmática positivista que o insula num sistema fechado em si mesmo. Necessário é que se complementarize em perspectivas mais amplas, somando as visões sociológicas e ontológicas no seu eixo axiológico. Observa Plauto Faraco, em tela, que nessa mesma linha de pensamento situa-se Elías Diás, ao observar que “não se entende plenamente o mundo jurídico, se o sistema normativo (ou ciência do direito) se insula e se separa da realidade em que nasce e à que se aplica (sociologia do direito) e do sistema de legitimidade que o inspira e que deve sempre possibilitar e favorecer sua própria crítica racional (filosofia do direito)”.
A compreensão totalizadora do direito envolve, pois, três dimensões básicas: normativa, sociológica e filosófica. Não pode, destarte, a compreensão do direito limitar-se apenas à dimensão normativa, geradora do positivismo. Deduz então Plauto Faraco que essa compreensão integrada do direito e do discurso jurídico que o exprime, permite evitar-se a injustificável cisão entre teoria e prática jurídica, entre ciência e filosofia ou sociologia do direito. Nessa ordem de ideias, o autor de “Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica” critica de modo particular a ordem constitucional brasileira, que se constitui por vezes numa agressão à própria instituição do direito.
Cumpre reformular em nossos cursos de formação jurídica, a visão positivista ainda prevalecente na formação do futuro operador do direito, que certamente atuará com essa visão no sistema vigente. Formação essa que se tem limitado ao conhecimento mecânico da lei, dos códigos e do sistema formal e processual. A visão do direito não pode estar dissociada das questões sociais e existenciais como um todo, para as quais a lei existe, questões que preexistem à lei e a ela subsistem, ao longo do processo histórico.
DO POSITIVISMO
BRASILEIRO
O caso brasileiro, tomando-se como exemplo o Ato Constitucional n° 5 (13-12-1968), é o exemplo típico de uma construção lógico-formal positivista, que separa a lei do direito e o direito da política (aqui, contraditoriamente, o direito foi apenas usado como instrumento de força), para, afinal reduzir-se a um mero aparato formal de decisões arbitrárias, positivadas, sob o poder tecnocrático do estado. O Brasil conviveu com uma deformação jurídica através dos atos institucionais baixados durante a revolução militar de 1964.
Na verdade, não se pode falar, com relação àquele momento histórico, em ordem constitucional, já que interrompida por atos institucionais surgidos em nome de interesses usurpadores do poder, o que, de certa forma, continua acontecendo atualmente, por força das chamadas medidas provisórias. No caso dos mencionados atos institucionais, houve uma clara distorção da ordem jurídica pelo sistema vigente no regime militar, utilizando a lei como instrumento de força e não como força do direito, para os fins pretendidos do governo de exceção.
Agora é a própria jurisprudência que por vezes distorce a lei para adaptá-la às exceções comportáveis em nossa ordem constitucional. Deduz-se daí que a construção lógico-formal do direito na linha positivista, ao invés de justificar a suposta neutralidade cientifica, serve, antes, para camuflar as ideologias que se infiltram em nossos sistema jurídico transformando-o em mero instrumento de controle social, quando não da positivação de interesses da classe dominante, ou dos agentes do direito nas instâncias superiores.
Estamos presos ainda numa armadura de leis impostas pelo Estado burocrático que representa os interesses da classe dominante, que transformou o direito num instrumento de controle social, dessa forma apropriando-se da lei para garantir uma estrutura implantada e manter esquemas vigentes em nome de uma disfarçada neutralidade. No chamado Estado democrático de direito, não superamos ainda o sistemas políticos radicais, que têm por trás os modos de produção econômica que dividiram o mundo em capitalismo espoliativo e socialismo gorado, devendo ceder espaço ao socialismo democrático.
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa. E-mail: evn_advocacia@hotmail.com)