Estamos presos numa armadura de leis impostas pelo Estado que, por sua vez transformou o direito num instrumento de controle social, apropriando-se da lei para garantir uma estrutura implantada e manter os esquemas vigentes em nome de uma aparente neutralidade. Vale lembrar, como ensina Roberto Lyra, que o direito é um instrumento de libertação e que se constrói a cada passo, a partir da dialética social. O direito é um processo dentro do processo histórico, que está em constante transformação. Mas nosso Estado burocrático de direito até hoje não alcançou o momento de superação de duas tendências dominantes em nossa civilização latina: do jusnaturalismo e do positivismo.
O que dificultou até hoje a superação entre nós, da dicotomia jusnaturalismo/positivismo, segundo Lyra, é que uma e outra corrente ficaram presas a abstrações, ora no conceito de justiça ora no conceito de ordem, sem se comunicarem nas respectivas concretizações. Dentro do processo histórico, o direito representa a articulação dos princípios básicos de justiça social que se atualiza segundo padrões de reorganização da sociedade, em que se desenvolvem as lutas sociais do homem. Cada vez que os princípios reguladores das ações humanas envelhecem, o direito também envelhece, fazendo-se necessária sua eterna reconstituição, a fim de se restabelecer a dialética social.
COMPOSIÇÃO DE
FORÇAS
A tese da dialética social do direito resume-se em articular as forças centrípetas e centrífugas que garantem as relações sociais, respectivamente no âmbito das sociedades nacional e internacional. Uma sociedade explodiria se não tivesse o mínimo de força centrípeta para garantir a sua própria coesão. Da mesma forma, não se operaria qualquer mudança nas suas infraestruturas, se não houvesse um coeficiente de forças centrífugas. No campo dos direitos humanos, o direito é visto como aspiração de liberdade, já que a liberdade é a essência do homem, conforme afirma Marx, essência que se adquire no conjunto das relações sociais. Exatamente o que se nega no positivismo legalista.
O homem se liberta quando conscientizado das forças geradoras do processo histórico (que é, por sua vez, um processo de libertação constante), em que ele se situa como sujeito do seu próprio agir e do modo de agir coletivo. O direito, portanto, não pode servir como instrumento de opressão, mas de libertação social: sua essência constitutiva não é a lei, mas a justiça, vez que a lei pode sofrer desvios a serviço da injustiça. A lei institucionalizada abre caminho para a compreensão histórica da instituição da justiça. A institucionalização da lei é uma conquista civilizatória, que não pode se transformar em instrumento de dominação.
SITUAÇÕES
CASUÍSTICAS
Se a justiça é o bem para o outro, segundo nos ensina Aristóteles, a lei justa é a que tutela o direito de todos, impondo, por sua vez, deveres equivalentes. Se a lei tem finalidade prática para resolver conflitos de interesses, nem por isso prescinde de valores ideais que pairam acima dos interesses, como ponto referencial da justiça. Há valores que subsistem na consciência coletiva e estão acima das leis e dos interesses conflitantes. As leis se fazem para o homem como ser social e não para o indivíduo como mundo à parte. O problema é igualar a lei para todos e não igualar a todos perante a lei. A lei injusta deixa de ser igualitária.
Igualdade, em sentido amplo, não é nivelamento social, é condição humana fundamental para o exercício da liberdade de ação individual em harmonia com a ação social. O problema para os indivíduos não é a existência da lei em si, posto que ela é necessária. O problema reside no fato gerador, ou no desvio de finalidade da lei. Esta há de nascer de uma causação social e destinar-se a fins sociais, e não decorrer de fatores casuísticos para beneficiar alguns indivíduos e prejudicar outros no corpo coletivo. A lei há de ser a legitimação das regras sociais estabelecidas. E estas na nascem necessariamente da cabeça dos especialistas, mas das necessidades humanas comuns.
NA PRÁTICA DA
ADVOCACIA
Em decorrência de nossas recentes publicações, recortamos aqui algumas manifestações oportunas, que nos foram postadas pelo advogado Fellipe Marques, destacando, por exemplo, a incongruência das leis na prática da advocacia, conforme demonstramos nos artigos (1 e 2) que versam sobre "Estado burocrático e conflitos sociais". Primeiro (diz doutor Fellipe): "Destaco o ponto específico da reflexão sobre o atrelamento (quase absoluto) entre política e economia. O resultado é que qualquer turbulência política afeta profundamente a economia, já que os governos deixam de gerir o Estado e passam a 'administrar as crises' objetivando, simplesmente, a manutenção do poder". Segundo: "No meu ainda curto tempo de peleja como aprendiz de advogado, tenho sentido os efeitos negativos da racionalização. No plano jurídico, a pretexto de uma 'coerência' jurisprudencial, são dadas decisões engessadas, que desconsideram as peculiaridades do caso concreto, fazendo do Judiciário a principal fábrica de injustiças da sociedade. O pior é que isso não está sendo combatido. Ao contrário, a cada dia surge um novo regramento, que institucionaliza e torna vinculantes essas padronizações".
CRÍTICA À DOGMÁTICA JURÍDICA
Sobre "Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica" (continua o doutor Fellipe): "Este artigo me fez lembrar um caso concreto que evidencia a importância da interpretação valorativa da legislação. A lei de alienação fiduciária prevê que no caso de mora do fiduciante o imóvel deverá ir a hasta pública (até duas tentativas). Se houver arremate, o saldo apurado será usado para pagar a dívida e custear as despesas do leilão, e o remanescente entregue ao fiduciante. Entretanto, se não houver arremate, o fiduciante receberá uma carta de quitação e perderá tudo o que foi pago. Por sua vez, o código de defesa do consumidor tem dispositivo que impede expressamente a perda total de parcelas pagas pelo fiduciante. Todavia, juízes têm entendido pela revogação tácita do dispositivo do CDC, por ela ser anterior à primeira lei, avalizando, então, a perda total do que foi pago por quem comprou um bem e atrasou por apenas 3 meses o pagamento. A meu ver, essa interpretação demonstra apego excessivo às formalidades jurídicas e não faz, absolutamente, justiça".
DO FORMALISMO
BUROCRÁTICO
Mas essa é ainda uma concepção ideal, não um princípio prático que, enquanto não atingido, tem o Estado como instrumento de força e a lei como força do Estado. Até quando? Uma objeção é, se a realização da justiça depende apenas dos magistrados, ou do poder judiciário como um todo, em cujas mãos deságuam os problemas da sociedade. Dir-se-ia que a realização da justiça, como um bem comum, depende da sociedade como um todo que a rigor, deveria observar as regras sociais estabelecidas, antes das regras jurídicas impostas.
Do contrário, prevalecem as regras jurídicas impostas de cima para baixo, segundo a fórmula romana: "dura lex sed lex" (a lei é dura, mas é lei). Pergunta-se: e os que fizeram a "dura lex", fizeram-na também para si, ou somente para os outros? Surge outra inquietante interrogação: o Estado tem a sociedade que deseja, ou a sociedade tem o Estado que merece? Se o Estado tem a sociedade que deseja, educa-a ou a disciplina. Se a sociedade tem o Estado que merece, ou o aceita ou o transforma.
PAPEL DO
MAGISTRADO
De preconizar-se a conveniência de uma visão interdisciplinar do direito, com introdução de conteúdos parajurídicos necessários à construção de uma epistemologia jurídica, que terá sustentação em novos princípios de hermenêutica. Sendo assim, o papel do magistrado não é simplesmente aplicar a lei, mas interpretá-la em função da realização da justiça. Entende-se que enquanto a lei for imposta pelo Estado ao invés de ser insculpida na consciência coletiva, poderá provocar reações de desobediência e de contestação à ordem estabelecida, se for outra a consciência dos valores éticos da sociedade.
A simples lógica do direito traduzida em técnica de controle social, não basta para garantir a eficácia da lei. A lei estatal há que corresponder às leis sociais e estas aos princípios éticos que informam o sistema jurídico. Seria inútil uma lei que obrigasse a andarem vestidos todos os indígenas de uma tribo, assim como a andarem pelados todos os cidadãos de uma cidade. Um problema sempre emergente é o desnível dos indivíduos no todo social face à escala dos valores estabelecidos, bem como dos interesses em jogo. Só a educação (não a lei), como sustentáculo da consciência de valores, resolveria essa dificuldade no sentido de despertar nos indivíduos os valores traduzidos em leis como regras sociais.
A ESTRATÉGIA DO
DISFARCE
O direito normativista elaborado pelo Estado burocrático não passa de uma estratégia montada para agasalhar as contradições internas inconciliáveis no plano social, mas que devem encontrar uma incontrastável solução no plano jurídico. O direito prevalece como uma ficção lógica, enquanto a sociedade permanece numa realidade caótica. Dai surgirem os juizados especiais de pequenas causas (para a população miúda), bem como as juntas de conciliação e julgamento (para compor litígios oriundos da classe trabalhadora em confronto com a classe patronal).
Em conclusão, o positivismo normativista acaba servindo como faca de dois gumes (pelas brechas da lei) ao ser aplicado na prática social, para a composição (e não solução) dos conflitos de interesses. Daí a multiplicidade e heterogeneidade das formas e experiências operacionais, e o excesso de leis que comprometem a unidade e coerência do sistema jurídico. O direito em tantas ramificações e especializações, visando a compor situações emergenciais, fragmentou-se acompanhando a própria fragmentação da sociedade. E se ressente, portanto, da falta de unidade e coerência (não lógica, mas ontogenética) separando-se, como forma, de usa essência constitutiva, a justiça.
Nota: Nesse sentido foi o meu recente artigo "Os poderes na gangorra no Supremo Tribunal Federal", mostrando como a balança da justiça se move conforme o jogo dos poderes, sobre o que recebi a seguinte manifestação do doutor Fleurymar Souza, in litteris: "Ler artigo tão tempestivo quanto justo e objetivo, num momento de tanto desalento quanto aos rumos do Brasil, não deixa de ser uma boa oportunidade para a gente renovar nossas esperanças. O STF, de fato, tem sido uma constante usina de dúvidas e incertezas, dando inequívoca contribuição ao clima de insegurança em que vivemos".
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa.E-mail: evn_advocacia@hotmail.com)