Uma das fontes da longevidade do doutor Donizetti era o próprio amor à vida, às pessoas, à natureza e, sobretudo, a pureza de consciência, a fé, a certeza da eternidade do homem como presença temporal de Deus. Enquanto juiz de direito, doutor Donizetti dizia ter acreditado sempre no Poder Judiciário. Quanto a erros judiciários, sabia que existem, mas não deve destruir o ideal de justiça. Doutor Donizetti não carregou decepções para à vida. Como juiz, foi enérgico, aplicou a lei, mas sempre colocando a dignidade da pessoa humana acima das circunstâncias de momento e das convenções sociais. Um exemplo para quem busque a magistratura como uma forma de ajudar na construção de uma sociedade justa. Matéria completa sobra a secular sabedoria de doutor Donizetti Martins, poderá o leitor conhecer no livro deste autor, "Os poderes da Posse" (Goiânia: Kelps, 2011), de que extraímos apenas alguns aspectos bizarros da antiga judicatura em Posse, para encerrar esta série temática de nossos artigos jurídicos.
DO JUIZ E
ADMINISTRADOR
Foi na comarca de Posse que o doutor Donizetti iniciou sua carreira na magistratura em 1939. Tinha sido classificado por concurso em 2º lugar para vaga aberta na comarca de Rio Verde. Essa vaga tinha sido compromissada para outro colega, declara. - "Então, o Dr. Colemar Natal e Silva, que era Secretário do Governo, sugeriu-me que aceitasse a comarca de Posse, que estava vaga. Logo o interventor Pedro Ludovico nomeou-me. Ao mesmo tempo, ficou acertado que eu seria transferido para uma comarca do sul, na primeira vaga que houvesse. Aceitei, de bom grado, a comarca de Posse, onde permaneci durante o ano de 1939 e até 1940, e após período de férias, sendo transferido para Bonfim, hoje Silvânia, onde tinha sido juiz substituto".
Em Posse, comenta doutor Donizetti que encontrou o povo insatisfeito com o então prefeito Jonas Vieira de Lima, que havia sido denunciado ao governo do Estado. Fora recebido na cidade pela esposa do prefeito, Hilda de Lima, uma vez que o prefeito tinha sido chamado a Goiânia. A prefeita substituta organizou uma grande homenagem ao meritíssimo recém-chegado. Ofereceu-lhe um piquenique que teve lugar numa chácara nas proximidades da cidade, ao qual compareceu em peso a sociedade possense.
Quando o prefeito Jonas voltou de Goiânia, eis que o juiz o advertiu: que o povo andava muito queixoso, que ele nada tinha feito em benefício da cidade (viera de Januária, Minas, e fora nomeado prefeito de Posse) e que o juiz estava disposto a ajudá-lo a fazer algum benefício para o povo. Jonas explicou-lhe que na verdade não tinha podido fazer quase nada porque a Prefeitura não tinha arrecadação e não dispunha de recursos para administrar.
Aceitou, de bom grado, a colaboração do juiz e passaram a trabalhar juntos. Já que não existia Fórum em Posse, o expediente do Judiciário era na própria Prefeitura, numa saleta reservada para o juiz. Essa união dos poderes Judiciário e Executivo foi benéfica para a cidade de Posse. O juiz passou a assessorar o prefeito na qualidade de seu mentor intelectual. Serviço para o Judiciário, quase nada. Na administração pública, tudo por fazer.
OBRAS
ADMINISTRADAS
PELO JUIZ
Então, disse o juiz ao prefeito: - A primeira obra que nós vamos fazer aqui é um campo de aviação. Como não há estradas, vamos fazer um campo de aviação para facilitar o contato com outras cidades. Escolhi o local para construção da pista e administrei pessoalmente o serviço. Tanto que ia para lá de madrugadinha acompanhando e orientando os trabalhadores. Uma turma de quarenta e tantos baianos. O prefeito foi correto. Pagou direitinho.
Construída a pista de pouso, o prefeito Jonas oficiou a oficiais da Aeronáutica em Belo Horizonte, que mandassem inaugurar o campo de Posse, mas ninguém compareceu. Doutor Donizetti foi ao Rio de Janeiro, então capital federal, procurou o brigadeiro Eduardo Gomes no Ministério da Aeronáutica.
Em seu gabinete, expôs-lhe a necessidade do campo de aviação em Posse. Apontou-lhe no mapa onde ficava a isolada cidadezinha do nordeste goiano, nos confins de Goiás com Bahia. Assegurou-lhe que o campo era bem construído e que não oferecia perigo algum. Palavra de juiz. Ao que lhe respondeu o brigadeiro: ficasse tranquilo, o campo seria inaugurado dentro de poucos dias. Mais tarde, já transferido de Posse, em visita ao Palácio do Governo em Goiânia, eis que o próprio governador Pedro Ludovico lhe dá a boa nova: o campo de Posse tinha sido inaugurado.
Nesse antigo campo de aviação, que fica hoje em área central da cidade, o doutor Donizetti recorda que teve o prazer de pousar duas vezes: uma em avião do Estado, outra em teco-teco particular. A terceira vez que visitou Posse, em julho de 1991, foi em confortável viagem de automóvel, pela rodovia Brasília-Fortaleza. A diferença foi espantosa para o doutor Donizetti, tendo em vista a primeira viagem que fez a Posse em 39: a partir de Formosa, viajara a cavalo, passando por Sítio d'Abadia, depois de adentrar parte de Minas, e chegando a Riachão (hoje Mambaí), depois de adentrar parte da Bahia, e assim chegando finalmente a Posse. Estradas ruins, perigosas, atravessando vales e serras, como a temível Serra de São Domingos, com uma única pista escorregadia, entre elevações e despenhadeiros.
DO PRIMEIRO GRUPO ESCOLAR
Depois de construir o campo de aviação, foi a vez de criar um grupo escolar em Posse. - Conversei com o prefeito, - diz o juiz. - Ele acedeu, da melhor boa vontade. Eu escolhi então uma casa, ele alugou essa casa e logo contratou três professoras formadas. O grupo escolar foi avante, imediatamente. Com matrícula de duzentos e tantos alunos, de início. O primeiro grupo escolar de Posse, então, foi da Prefeitura e não do Estado. Criado pelo prefeito Jonas Vieira, mas graças à minha colaboração.
As três professoras normalistas, esclarece o doutor Donizetti, eram: Almerinda Arantes, diretora do grupo (escrivã em Posse, explica, "senhora do Otávio Arantes"), que mais tarde veio a ser deputada estadual. As outras professoras eram as irmãs Alcina Pinto de Araújo e Francisca Pinto Fernandes, vindas de Formosa para Posse em 1936.
O sobrenome Araújo e o Fernandes, deve-se, respectivamente, a Ernesto Araújo e Calíopes Fernandes, naturais da cidade de Posse, com os quais se casaram essas professoras. Foram elas responsáveis pela formação de várias gerações de jovens possenses, atuando mais tarde no ensino secundário através do Ginásio Normal Regional Dom Prudêncio de Posse.
Além de obras nos setores de comunicação, transporte e educação, o meritíssimo desenvolveu uma campanha de esclarecimento da opinião pública em Posse, convencendo a população a melhorar as fachadas de suas residências, por sua vez transferindo ranchos de palha que ficavam no centro da cidade, para áreas periféricas (sem violência, frisa) e, afinal, organizando o alinhamento de ruas, o que resultaria no deslocamento do antigo cemitério que ficava em área central da cidade para local mais adequado, onde se encontra atualmente.
AS PERIPÉCIAS DA JUDICATURA
Recorda doutor Donizetti que quando fora juiz substituto em Bonfim, hoje Silvânia, teve que assumir a justiça eleitoral. Um de seus primeiros atos foi conceder habeas corpus preventivo ao desembargador aposentado Airosa Alves de Castro, então político de oposição ao interventor Pedro Ludovico Teixeira, tendo alegado o desembargador que tinha sido ameaçado pelo sargento Ferraz. Ora, conceder habeas corpus naquele tempo a político da oposição, era ato temerário. Não obstante, o juiz Donizetti tinha bom relacionamento com o interventor, o qual, segundo afirma, sempre respeitara seus atos.
Em Posse, teve que mandar prender em 1939, o coronel José Francisco dos Santos, que tinha sido 3º vice-presidente do Estado, acusado de sedição em processo movido pelo rábula Pedro Santa Cruz, político implacável que lhe fazia oposição pelo lado dos Ludovico contra os Caiado.
Santa Cruz desentendera-se com o coronel José Francisco e os amigos deste promoveram uma serenata maldosa à sua janela, com batucada de latas e chocalhos, gritos e palavrões, fazendo-o evadir-se de casa pela porta do fundo. Fora instaurado processo por ordem do governo do Estado. Mas o processo estava sem andamento por falta de juiz de direito na comarca de Posse.
Dr. Donizetti mandou reabrir o inquérito, ouvir os implicados e deu andamento ao processo até final julgamento. Dirigiu-se então ao coronel José Francisco, pessoalmente: - "Coronel, sou agora obrigado a mandar prender o senhor, de acordo com a lei, para responder a este processo".
Na verdade, tratava-se de prisão temporária domiciliar, até porque Posse não tinha cadeia pública, a não ser um precário compartimento que restara da antiga casa de cadeia e câmara que tinha sido doada ao governo provincial em 1872, pelo coronel José Balduino de Souza, quando da elevação da vila de Posse a município. O coronel José Francisco ficou custodiado em casa por alguns dias, foi submetido a julgamento e teve absolvição, juntamente com os demais implicados.
INSUBORDINAÇÃO DO SOLDADO ANDRÉ
A maior peripécia que enfrentou como juiz, lembra o Dr. Donizetti, foi quando teve que prender o soldado André, em Posse, por ato de insubordinação. Recém-chegado, estava sendo homenageado num pequenique, ao tempo em que ordenara a alguns policiais que fizessem uma diligência a Correntina, Bahia, para trazerem um preso que havia fugido da cadeia de Posse. Cabe observar que, em vez de cadeia, existia uma chamada prisão pé de jegue, em que o preso era atado a uma corrente e mantido sob a vigilância de um policial.
Justamente na hora do piquenique, numa chácara aprazível, num domingo de manhã, inesperadamente aparece o soldado André, com o fuzil na mão, descompondo Pedro Nunes da Silva, um dos convidados e subprefeito de Iracema, então distrito de Posse (hoje Iaciara). - "Dirigiu-se ao subprefeito, eu assim de lado - explica o juiz - descompondo Pedro Nunes e dizendo que aqueles arreios sem estribos não prestavam, pá, pá, pá, pé, pé, pé, e que não ia fazer a viagem a Correntina. Eu então o adverti: - Soldado, o senhor está aqui desrespeitando o subprefeito de Iracema, um dos convidados que está aqui conosco. Só que aqui não é lugar de o senhor fazer reclamação. Deveria fazer essa reclamação lá na cidade, não aqui agora, ainda mais armado de fuzil. Volte e vá fazer a diligência".
Dito isso, o soldado virou-lhe as costas e foi unir-se aos outros que aguardavam a certa distância. - "Aonde vai, doutor? - surpreenderam-me os amigos. - Vou à cidade, mandar prender o soldado que se insubordinou quanto à minha ordem. Os soldados foram andando para diante, foram sumindo, sumindo, nós atrás, eu e dois homens que me acompanhavam, e tentamos desviar o caminho. Falei: vamos seguir por ali, eu não quero contato com aquela gente aqui no campo. Quando seguíamos por ali, os policiais vieram ao nosso encontro e o sargento foi logo dizendo que o soldado André, pá, pá, pá, que os arreios não prestavam, pé, pé, pé, que isso que aquilo outro."
- "Então, ordenei: - Sargento, prenda o soldado, porque ele desobedeceu à minha ordem. O sargento, então: - André, de-cá o fuzil. O soldado correu para trás, com o fuzil, bala na agulha. Mirou, assim, para atirar. Para atirar! Eu dei um berro: - Prenda o soldado, sargento! Não seja mole! Leve-o pra cadeia. - Aí o sargento pegou no fuzil, admoestou o soldado, que eram amigos, que o seguisse, que iriam até a cadeia". - "Saíram então caminhando para um lado da esquerda. Apenas deram uns passos, o soldado André fez uma reviravolta, sacou de um revólver e vinha pra me atirar, veja só! Quando ele fez aquela reviravolta, assim, eu achei logo uma cerca de aroeira, numa chácara ao lado, essa cerquinha foi a minha salvação. No que o soldado puxou o gatilho, eu já estava atrás da cerca".
A PROPOSTA DOS
JAGUNÇOS
Na cidade, o doutor Donizetti Martins de Araújo abrigou-se na casa do coronel Argemiro Antônio de Araújo (Araújo por coincidência, não por parentesco, explica). Logo depois se apresentara a ele dois jagunços, um pernambucano e um baiano, que queriam ordem para matar o soldado.
O meritíssimo foi enérgico: - "Absolutamente! Vão embora e deixem o homem em paz. Não quero que vocês toquem a mão nele. O soldado vai ser punido em Goiânia. Ele e o sargento que não teve coragem para prendê-lo." Mandou chamar o sargento na residência do coronel, este lhe explicou que estava com o soldado detido em casa, porque a cadeia não oferecia segurança, mas que estava à disposição do juiz.
- "Oficiei ao interventor Dr. Pedro Ludovico, ao Secretário de Segurança e ao Comandante de Polícia do Estado, e mandei o sargento conduzir o soldado para Goiânia" - explica Dr. Donizetti. Resultado: o soldado foi preso e depois expulso da Força Pública. O sargento, advertido, mas continou trabalhando. Por proteção de Pedro Santa Cruz! - exclama Dr. Donizetti - não é que esse soldado voltou para a Força Pública!
Isso aconteceu quando o comandante de Polícia estava de férias. Mas reassumindo o comando, chamou o soldado em seu gabinete. Narra o Dr. Donizetti: - "Ó André, o senhor não é aquele soldado que quis matar o juiz de direito de Posse? - Sou eu mesmo. E o senhor não se arrependeu do que fez? - Não senhor, um homem não se arrepende do que faz. Pois é - replicou-lhe o comandante - o senhor já foi preso, expulso e conseguiu voltar. Pois agora está novamente expulso!"
Quando era juiz de direito da comarca de Morrinhos, lembra o Dr. Donizetti, numa viagem que fazia em companhia de um tenente da Polícia, contando o caso a ele, eis que o tenente lhe perguntou: - "O senhor sabe, doutor, que o soldado André era meu primo?"
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa. E-mail: evn_advocacia@hotmail.com)