Sentimos na pele o inevitável da modernidade em que vivemos. Carentes de sentidos, percebemos por dentro de nós que é difícil encontrar o que se busca quando não se sabe ao certo o que se procura. Seja o sentido de uma simples palavra, o sentido de um conjunto delas ou mesmo o sentido da narrativa completa de uma vida inteira.
O que nos aconteceu? Como viemos parar aqui, de onde iniciamos a jornada, por que vivemos, quem somos, o que devemos fazer, o que vem depois, o que falta perguntar?
Corre em nossas veias o transbordante sangue poético dos tapuias e tupinambás das gerais do Brasil, misturado com a racionalidade de outros povos e lugares. E não-povos e não-lugares.
Querendo ou não, todos temos ao menos alguns valores esfarrapados e com eles formamos uma moral. Assim também, quer a gente saiba ou não, temos todos uma porção espiritual particular, mesmo que seja sua negação. Sentimos o incômodo da solidão, sentimos a dúvida do vazio e ao mesmo tempo sentimos o alívio místico que o mundo pode nos dar observando coisas tão pequenas como um grão de areia, de onde se originam tantas metáforas. Em todos nós, portanto sem qualquer exceção, vem refletir aquela mesma antiga e eterna demanda. Aprendemos, então, de forma doce ou abrupta, que a fome de sentido para nossas vidas faz parte da condição humana. Já as estratégias para aplacá-la variam ao infinito. Qual é a sua?
Trago uma proposta. Depois que muito já se esculpiu Cristo, se pintou Virgem Maria, se retratou São Francisco e tantos santos e santas -e até a Santa Achiropita, cuja nome diz “a que não se pinta”, por que o artista não pintar Deus? E você, já pensou no seu? Seja ateu, agnóstico ou crente, é impossível passar ao largo deste poderoso e imantado nome sem sentir sua presença em tudo que existe, mesmo que seja comprovando-a pela forma de sua ausência. Ou seja, para cada um de nós sempre haverá um além.
E como saber se duas pessoas têm algo parecido em mente quando dizem a palavra Deus? “Minha ideia de Deus, observa o ensaísta espanhol Miguel de Unamuno (1864), é diferente cada vez que eu O concebo”. Para todos os efeitos -e sobretudo para os defeitos desta pequena dissertação, suponhamos que falamos de algo que nos seja comum e próximo, não necessariamente aquele que criou seu filho dileto à nossa imagem e semelhança, mas da existência de um poder transcendente Criador do universo ou ainda, de alguma forma de inteligência infinitamente superior à nossa e responsável pela ordem e caos que estamos imersos, pela beleza e seus contrastes.
Pois em assim sendo, temos algo do que falar e cabem muitas perguntas. Por exemplo. Se acreditamos ou sentimos um Criador do Universo, por que Ele é exatamente assim como acreditamos que o percebemos? Por que existe algo em vez de nada existir; o “nada” não seria muito mais conveniente e convincente? E por que, em existindo, Ele é tão grande que não existe maior? Deus não teria ele mesmo o direito -ou o poder- de ter um para chamar de seu? E assim poderíamos seguir cofiando sua barba eternamente. Por existirem várias maneiras de divergir e apenas uma de convergir, estas são perguntas sem respostas e que têm como único mérito elevar o mistério a uma instância superior, mais condigna da nossa suprema ignorância.
Já Alberto Caeiro, heterônimo do português Fernando Pessoa, afirma que “pensar em Deus é desobedecer a Deus”. Seguindo nesta vereda, a consciência que temos Dele é algo irreparável e o seu conhecimento marca como o fogo. Uma vez percebido, não se consegue mais ser como era. “Desmorder a maçã não existe como opção”, lembra o brasileiro Eduardo Giannetti. Por savanas, florestas, largas estradas ou trilhas, todos seguimos vivendo -e mordendo. Uns acreditando por acidente. Outros, por necessidade. E há ainda os adeptos do avesso, que acreditam no não-acreditar, portanto, acreditando mesmo assim.
Quase sem perceber, vamos passando a vida no deserto esvaziado de sentidos, como são os desertos de nossas cidades. Ou haveria como negar estas palavras do filósofo estadunidense Ralph Emerson (1803)? “Em nossas grandes cidades a população não tem Deus, está materializada, sem vínculo, sem companheirismo, sem entusiasmo. Não são homens, mas fomes, sedes, febres e apetites ambulantes. Como tais pessoas conseguem seguir vivendo? Nenhuma fé no universo intelectual e moral. Fé, isto sim, na química, na carne e no vinho, na riqueza, na maquinaria; fé na opinião pública, mas não em causas divinas”.
É preciso registrar que ainda estará por ser escrita uma história dos usos e abusos do vocábulo “Deus”, entre os quais me incluo agora preparando uma exposição que o tem como modesto título. Ao que já não se prestou a evocação de Seu santo nome?
Antes da batalha que lhe permitiu unificar o vasto domínio terrestre, Constantino, o primeiro imperador romano a se converter à fé cristã, em 313 d.C., ordenou aos soldados que pintassem em seus escudos um símbolo composto dos caracteres iniciais do termo grego “Christos”.
Mais sutil, o general inglês Oliver Cromwell (1599) transformou a fé em Deus em eficiente critério de recrutamento ao constatar que “o soldado que reza melhor, combate melhor”.
A fivela do cinturão dos soldados nazistas trazia a inscrição: Gott mit uns (Deus está conosco). Já os americanos, diretos ao ponto, elegeram as suas moedas e notas de dólares como veículo de louvor ao poderoso ser divino: In God we Trust (Em Deus confiamos).
Impotente ou distraído, Deus parece não estar nem aí. Ele sempre foi assim: pau-para-toda-obra, conceito-para-toda-vantagem, motivo-para todo-lucro. E para-toda-arte, Ele é? O que podemos pensar do Deus do Artista, criado para ter seu reino no exato período da Exposição de apenas 7 dias de duração a que este texto serve de abertura? Não é de se perder.
(Px Silveira, curador de “Deus”, exposição de 4 a 11/09, em três salas no Buena Vista Shopping, com a participação de 49 artistas)