A nossa homenagem de hoje vai para a grande guerreira Gleice Francisca Machado, que fundou e preside a Associação Brasileira de Xeroderma Pigmentoso, para dar suporte àqueles que sofrem da enfermidade. Ela realiza um trabalho tão significativo que teve recente reconhecimento do Conselho da Comenda de Direitos Humanos Dom Hélder Câmara, do Senado Federal, colocando-a entre os agraciados com tão importante honra, em 2015.
Natural da Cidade de Goiás, possui bacharelado em pedagogia e está no último semestre do curso de serviço social. Em sua saga humanitária, Gleice chamou a atenção da sociedade, após 2010, por meio das várias plataformas de mídia, divulgando a doença genética, que praticamente impede a pessoa de ter qualquer contato com a luz do sol.
Foi responsável pela divulgação nacional e internacional da doença na comunidade de Araras, no interior de Goiás, que tem uma em cada 40 pessoas acometida pela enfermidade. O caso despertou interesse científico em todo o mundo.
Em nosso país, a divulgação desse drama de saúde muito se deve ao empenho da professora goiana, moradora do distrito de Araras, em Faina (GO), cidade do noroeste goiano com 8 mil habitantes. Pela sua dedicação a uma causa humanitária, Gleice foi escolhida entre aqueles que tiveram o privilégio de conduzir a tocha olímpica em chão goiano. Ela transportou a chama na passagem dela pela Cidade de Goiás.
Xeroderma Pigmentoso é um câncer de pele, também conhecido como XP; o mal afeta ao menos 21 moradores de Araras, incluindo um filho de Gleice. A doença é fruto de um erro genético. Ela deixa o paciente com uma pele hipersensível à luz. Qualquer contato com raios ultravioletas lhe causa câncer. A enfermidade, transmitida de pai para filho, pode ou não manifestar em algum momento de suas vidas.
No caso dessa comunidade, ela atingiu a quarta geração. Além dos que lá moram, outros dois nascidos na localidade e residentes nos Estados Unidos carregam a moléstia. Ao menos 20 integrantes da mesma família morreram por causa dela nos últimos 50 anos.
Cerca de 200 famílias moram em Araras. A maioria é formada por casamento entre parentes, principalmente primos. E é justamente essa cultura que tem levado à perpetuação e proliferação do xeroderma na vila, pois trata-se de uma enfermidade recessiva, mais comum entre nascidos de casamentos consanguíneos (entre parentes), em que a chance de duas pessoas terem o mesmo erro genético é maior.
A incidência média de casos de xeroderma no mundo é de um em cada grupo de 200 mil pessoas. Fenômeno com concentração semelhante à de Araras ocorre em uma comunidade indígena da Guatemala. A maior diferença desses doentes da América Central é que eles não vivem mais de 10 anos. Os de Araras conseguem chegar à fase adulta, mesmo sendo corroídos pelo câncer ao longo do tempo. O grupo goiano tem pacientes de 8 a 77 anos. Esse fator leva os cientistas a imaginar que se trata de uma mutação leve, agravada por fatores ambientais, como a alta incidência solar.
O drama desse povo foi revelado pelo Correio, a partir de uma inciativa de Gleice, que procurou o jornal. As entrevistas com os doentes de Araras renderam uma série de reportagem, iniciada em 4 de outubro de 2009. Com ela, Gleice Machado passou a cobrar das autoridades a dívida centenária com os doentes e Araras. Logo em seguida, ela recebeu o diagnóstico das pintas que começavam a tomar conta do rosto do filho, Alisson Wendel. Aos 7 anos, era o mais recente portador de xeroderma no povoado.
Em vez de esmorecer, Gleice ganhou mais força e passou a cobrar ainda mais dos governantes. Mas as medidas para darem esperança àquela gente abandonada ainda demandaria tempo. Nos primeiros meses após as reportagens do Correio, a Secretaria de Saúde de Goiás resistia em dar mais atenção aos doentes de Araras. Afirmava não poder fazer nada além das consultas e cirurgias para retirada de tumores dos pacientes. Negava até distribuição gratuita de protetor solar, essencial na prevenção.
Somente quatro meses depois autoridades goianas começaram a tomar as primeiras providências para assistir os 21 moradores do vilarejo portadores do mal. Por iniciativa do Ministério Público estadual, representantes da área de saúde de Goiás organizaram uma força-tarefa para atender os doentes. Desde então, unidos em uma associação, os pacientes de Araras têm conseguido maior atenção do Estado.
Sob pressão do Ministério Público, a Secretaria de Saúde criou um ambulatório só para os portadores de xeroderma, no Hospital Geral de Goiânia (HGG). A unidade ainda não se concretizou, mas os pacientes que esperavam até dois meses para um atendimento médico fazem consultas semanais com uma equipe especializada. A comunidade acadêmica também reagiu.
Geneticistas da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de Goiás (UFG) estudam o caso desde 2010. Além de examinar os 21 pacientes de Araras, coletaram material genético de todos os familiares dessas pessoas, gente sem manifestações da doença, mas que tem tudo para adquiri-la. A equipe médica pretende identificar casos suspeitos para realizar um trabalho preventivo a fim de evitar a disseminação do xeroderma na comunidade e minimizar os efeitos nos novos portadores. No entanto, um trabalho demorado e sem a garantia de sucesso.
Na luta quase solitária para chamar atenção aos doentes da sua comunidade, Gleice Machado decidiu escrever um livro. Ela reuniu as reportagens do Correio e de outros jornais que se interessaram pela história, artigos dos especialistas que estudam o caso e depoimentos dos pacientes, além de impressões próprias. Com apoio de um empresário goiano e de instituições públicas e privadas, lançou a publicação, intitulada Nas asas da esperança. Que Deus continue abençoando ricamente essa guerreira e o trabalho que realiza!
(João Nascimento, jornalista)