Na noite anterior passara por Irafok, uma povoação de negros, ex-escravos dos tuaregues. Quando se chega a um povoado a população corre, como de costume, acotovelando-se ao redor do jeep, seja por curiosidade seja devido às pequenas obras de assistência prestadas pelos que freqüentam as veredas do deserto: dar um pouco de chá, distribuir medicamentos, entregar alguma carta. Naquela tarde notara que o velho Kadá tiritava de frio. Parece até esquisito falar de frio no deserto. Mas é assim mesmo, a ponto de o Saara ser definido como "região fria em que faz muito calor quando há sol". O sol, contudo, já descera, e Kadá estava tiritando.
Senti-me levado a dar-lhe um dos cobertores que levava comigo e que constituía a meu farnel. Afastei, porém, de boa mente aquele pensamento. Estava pensando na noite, e sabia que também eu tiritaria. Mas o pouco de caridade que havia em mim fez-me refletir, lembrando-me que a minha epiderme não valia mais que a dele e que eu teria praticado uma boa ação se lhe houvesse dado um.
Quando parti, os dois cobertores encontravam-se ainda no Jeep. E agora aí estavam, na minha frente, acusando-me. O mais estranho, porém, foi que sonhei que estava dormindo sob a grande pedra. Vi que a pedra se movia e que o bloco estava prestes a cair em cima de mim. Que susto!
Abri os olhos e vi Kadá tiritando diante de mim, em Irafok. Não mais hesitei: dei-lhe o cobertor, pois, além do mais, estava aí, junto de mim, inutilizado, a um metro de distância. Procurei estender a mão para entregar-lho; porém, o bloco de pedra que me imobilizara não me permitia nenhum movimento. Compreendi que aquilo era o purgatório, e que o sofrimento da alma consistia em "não mais poder fazer aquilo que antes podia e que devia ter feito!". Quem sabe por quantos anos teria visto aquele cobertor junto de mim, naquela posição incômoda, testemunhando o meu egoísmo e, consequentemente, a minha falta de maturidade para entrar no reino do amor.
A presença do cobertor que na tarde precedente eu recusara entregar a Kadá dizia-me restar ainda um longo caminho a percorrer! Eu que era capaz de encontrar um irmão tiritando de frio e passar adiante, seria capaz de morrer por ele, a exemplo daquele Jesus que morreu por todos?
Não mais quero enganar-me; não mais posso enganar-me: a verdade é que não fui capaz de dar a Kadá o meu cobertor, de medo da noite fria; isso quer dizer que amo mais a minha pele que a de meu irmão, ao passo que o mandamento de Deus me ordena: "Ama a vida dos outros quanto a tua". Mais ainda, isso pertence ao Antigo Testamento, a primeira revelação de Deus ao homem: "Ama a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo" . Ao passo que, se formos ao Novo Testamento e à revelação de Jesus, as coisas se complicam: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei!".
Como eu!, ou seja, não somente o cobertor, mas a própria vida. O ato de amor perfeito consiste, na realidade, em estarmos dispostos a fazer o que fez Jesus: morrer por Kadá, por mim, por todos.
Sobre esse ponto de vista o céu é o lugar onde todos os presentes devem estar de tal forma "maduros para o amor", a ponto de oferecer a própria vida por todos os outros; purificados pelo amor como pelo fogo. É o amor perfeito, universal, radical, sem sombras de aversão, de antipatia, de limite.
Quem está disposto a isso, levante a mão!
Por isso, após a visão da grande pedra, vejo o meu purgatório longo, terrivelmente longo, talvez longo quanto as eras geológicas. Deus não tem pressa de fazer as coisas. O tempo é dele, não meu. E eu, minúscula criatura, homem, fui chamado para ser transformado em Deus por participação. Aquilo que me transforma é a caridade, infundida por Deus no meu ser.
O amor transforma-me lentamente em Deus. O pecado consiste justamente no seguinte: resistir a tal transformação, saber e poder dizer não ao amor. Viver no egoísmo quer dizer deter-se no estado de homem e impedir sua transformação na caridade divina. E enquanto não for transformado "por participação" em Deus, mediante a caridade, pertencerei a "esta terra" e não "àquele céu".
Fui elevado ao estado sobrenatural pelo batismo. Tal estado, porém, deve amadurecer, e a vida toda nos é dada para alcançar tal maturidade; ora, quem nos transforma é a caridade, isto é, o amor de Deus.
O fato de ter resistido ao amor e de não ter sido capaz de corresponder à sua solicitação que me dissera: "Dá o cobertor ao teu irmão", é de tal forma grave que cria, entre mim e Deus, a porta do meu purgatório.
"Sereis julgados sobre o amor", diz-me a grande pedra sob a qual passarei o meu purgatório, aguardando que mature em mim a caridade perfeita, a mesma que Jesus me trouxe sobre a terra e me entregou com o preço do seu sangue, acompanhando-o com o brado da esperança: "Ressuscitar-vos-ei no último dia!". Oxalá tal dia não esteja muito longe!
(Luiz Augusto, padre da Paróquia Santa Teresinha do Menino Jesus)