O regime que chamamos democracia é um bicho extremamente complexo. Suas características foram evoluindo desde as experiências em pequenas cidades gregas no 4º e no 3º século antes de Cristo, quando hábeis tribunos levavam a “massa” a aprovar suas ideias e o decreto anunciava “o povo decidiu...”, até os altos padrões exigidos hoje.
Já no início, a coisa era tão problemática que Platão, seu contemporâneo, afirmou na República que o “excesso de democracia levaria, inevitavelmente, à tirania”. No início do século 19, o grande Alexis de Tocqueville escreveu A Democracia na América, mesmo quando nos EUA havia escravidão, as mulheres não votavam e os indígenas espoliados não tinham cidadania. No século 20, a régua foi ficando mais alta.
O ponto de partida sobre o qual se constrói o sistema democrático é a existência de uma sociedade de homens que se querem “livres” e se aceitam como “iguais”. Organizam-se e concordam que haverá:
- Um governo exercido por representantes eleitos.
- As eleições serão frequentes e honestas.
- Absoluta liberdade de expressão.
- Amplo acesso às fontes de informações que não estejam sob controle do Estado.
- Absoluta liberdade de associação, seja em partidos políticos, seja em grupos de interesses visíveis.
- Completa integração de todos os cidadãos residentes. Temos todas as condições para construir uma democracia, mas não será tão simples.
O processo eleitoral que estamos vivenciando precisa ser sujeito a uma profunda reflexão. Afinal, é nele que nos preparamos para testar novos caminhos depois de uma década desastrosa (2006/2016), na qual registramos um dos piores crescimentos do PIB per capita do último século.
Apesar de significativas melhoras institucionais, assistimos, nos últimos 40 anos, à liquidação do “espírito de crescimento” que envolveu o País de 1939 à crise do petróleo (1979/1980).
O selvagem espetáculo que o maculou no último dia 5 foi uma tragédia pessoal e um alerta sobre os perigos que sempre ameaçam a democracia. Produziu mais pessimismo com o reconhecimento da barbárie que vai dissolvendo a hipótese generosa de uma “humanidade altruísta” ínsita na natureza do homem.
Basta olhar para a reação nas nações mais educadas e mais desenvolvidas do antiquíssimo continente europeu (e agora, até a Suécia) para assistirmos, horrorizados, à resistência em aceitar o “outro”. Ela coloca em dúvida a sua validade. Assistimos à morte da generosa crença de que o mundo é um arquipélago com “ilhas” habitadas por cidadãos dispostos a sacrificar-se para atender os vizinhos.
Quando vemos o homem como ele é, despido da romântica “humanidade moral” que lhe atribuímos, vivemos tempos normais. Trata-se de um animal territorial, dotado pela seleção biológica de um terrível e perigoso instrumento – a sua inteligência.
Como ela submeteu a Natureza que o criou e inventou sofisticados preconceitos para separar-se em tribos que se veem com desconfiança dentro e fora dos limites do “território” que ocupa como “seu” e no qual estabelece “suas” leis.
Pesquisas antropológicas recentes acumulam cada vez maiores evidências de que só o homem é capaz de, em nome de crenças sem nenhum suporte factual, desenvolver poderosas “teorias” para justificar pavorosos massacres de sua própria espécie, quando as põem em outras “tribos”.
A suprema esperança do sistema democrático é que através da Lei – que a todos submete – seja possível um compromisso entre indivíduos “livres” e “iguais” de empenharem-se numa honesta e razoavelmente racional discussão de seus problemas e – diante da realidade física que condiciona a vida social e econômica – deliberarem sobre o que supõem ser sua melhor solução.
A história mostra que esta é a única alternativa que permite a transição pacífica do poder para testar novas soluções. Obviamente, nada está garantido, devido às paixões próprias da natureza do homem.
A sua “humanidade” está sujeita a ser dominada pela “animalidade” sempre que incorporar a crença de sua superioridade sobre o “outro”. É por isso que o “Eu” ou “Eles” é a agonia da democracia e o caminho seguro para a sua morte.
(Delfim Netto, formado pela USP, é professor de Economia, foi ministro e deputado federal)