Não sou crítico literário. Aprecio, entretanto, resenhar livros. É o que eu faço, algumas vezes, em minhas crônicas. Hoje, excepcionalmente, tecerei breves considerações analíticas acerca do livro “Maya”, de meu confrade da AGL Ursulino Leão, recentemente falecido. É um fato incontestável. Ele, ao lançar sobredito romance em 1949, quando aluno do terceiro ano do curso de Direito em Belo Horizonte, aproveitou-se dessa situação factual como residente na pensão da Rosália, e produziu, como ele mesmo explicou no prólogo da segunda edição (1975) que é “um livro de jovem, elaborado de um jato nas horas que antecediam o jantar”. Um pequeno relato: em 1986, li de sua lavra, Praça da Vereda Maior, romance composto de interpolações nas quais faz desfilar o personagem central Godofredo, servidor público, mais um desses andantes de nossas urbes, mais uma “dessas existências na sombra”. Confesso que o sorvi aos poucos. Gostei demais. Em 1981, foi a vez de cair em minhas mãos Rodovia Preferencial, onde apresenta contos de um realismo impressionante, tipos humanos numa mostra de que o autor sabe lidar com obras fictas, todas impregnadas de um poder de narração de valor incomparável. Agora, solicitam-me que escreva algo sobre Maya. Não o li nos idos de cinquenta, uma vez que a idade menor não me permitia. Em 1949, por exemplo, contava apenas com onze anos de idade e cursava a primeira série ginasial no Ateneu D. Bosco. Fi-lo bem depois. Acho que em 1977, na segunda edição lançada pelos Irmãos Oriente, editores bastante considerados naquela época. Ao escrever Maya, indubitavelmente Ursulino Leão abriu espaço para seu début no universo literário. Embora jovem e estreante, já possuía o dom natural, inato, para imaginar, criar, personagens que se alteram num palco fictício. A obra, é toda ela dotada de um realismo crítico e, ao mesmo tempo, lírico, na qual se sugere a presença do autor, ora como narrador, ora como Hermano, seu alter-ego. Apesar dos obstáculos – principalmente por causa do fator tempo – não desisti da empresa. Mãos à obra, portanto. O romance possui muitas facetas que não deixam de oferecer espaços midiáticos aos críticos literais. O autor, talvez de propósito, se utiliza do nome do Ser Supremo mais de uma centena de vezes, numa amostragem de que, desde aquela época, já nutria seu acentuado amor à Igreja Católica Apostólica Romana, fé cristã que o acompanha até hoje. Como aconteceu comigo, que passei doze anos com os padres salesianos, como aluno e professor, Ursulino não se esqueceu de sua condição de ser um dos ex alievi de D. Bosco. Logo no primeiro capítulo, pela fala de Hermano nos dá, por meio de metáfora, uma explicação sobre a liberdade do homem. E o faz da seguinte maneira:
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Hermano não falava nunca de sua casa. Alegava não compreender muito bem porque o homem devia ter um lar.
O homem, diziam-lhe sempre, era o ser livre. Nem Deus o quis privar da liberdade. E Deus era o manda-chuva do mundo. E seu criador. Um dia, entediado, ele começou a brincar com barro, na sua olaria. Nos quintais do céu, Jeová havia mandado construir uma, para fabricar telhas e com elas consertar goteiras no purgatório. Brincando, suas mãos infinitamente idosas fizeram uma travessura digna de boa-surra. Criaram o Homem! Um boneco de barro, metido a muita coisa. Mas Jeová se arrependeu da brincadeira. Vendo o que faria o boneco, saído de si em momento de tédio, atirou-o num monte enorme de barro. E lá o deixou. Livre.
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No capítulo segundo, o autor, no papel do “eu narrador”, discorrendo sobre o vício de Manoel açougueiro, outro personagem que tem grande obstinação pela cachaça, e que embriagado caía sobre as cadeiras, dando pontapé nos móveis, babando nojentamente, um estorvo para sua esposa Emerenciana (Meré), e, também, para sua filha Sibila, assim se refere à cena:
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- Abre a porta, Meré! Abre a porta, bruaca! Meré! Meré!...
Aqueles gritos lhe transmitiam um pavor indescritível. Embrulhava-se mais e virava para o canto. Fechava os olhos. Fechava-os e via a mãe levantar-se, calçar os chinelos e ir escancarar a porta. Sem resmungar. Nem ao menos suspirar. Também, que enérgica era sua progenitora! Seu Manoel, completamente embebedado, podia xingar, quebrar louças, esmurrar paredes. Mas nunca ousara triscar em dona Meré. Ela, sem dizer nada, metia-o na cama e enfiava-lhe pela boca um chá especial de antemão preparado. Depois ia à missa. E, como uma estátua, o tempo todo de joelhos, pedia a Deus que lhe curasse o marido. Pedia que tivesse dó da Sibilinha. Agarrava-se com Santa Mônica que, mãe de grande farrista, avaliaria melhor o seu sofrimento. E cochichava com Santo Agostinho, advertindo-lhe que como já havia conseguido abandonar o vício e abraçar a virtude, desse ao Manoel a receita milagrosa.
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No excerto acima, o autor não titubeou e, sem pestanejar, chamou Santo Agostinho (354-430) de grande farrista, afirmando que, ao depois, havia conseguido abandonar o vício e abraçar a virtude.
Todos sabem, e Ursulino também, que Santo Agostinho era um espírito irrequieto e sedento da verdade. Enveredou por várias correntes filosóficas e seitas até abraçar o cristianismo. Incursionou pela vida amorosa, e viveu por muito tempo com uma mulher. Ambos tiveram um filho. Até hoje não se sabe o nome dessa senhora que Santo Agostinho amou e por ela era foi amado. No capítulo quarto, pela boca de Hermano, em alusão à sociedade, assim profliga, falando novamente sobre o Ser Supremo:
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Como eu, não! Nada tenho contra a sociedade... A sociedade é um potro manhoso... só derruba quem não lhe conhece a técnica dos pulos... As minhas invectivas contra este potro são apenas diletantismo... para estar com a cartola da moda. Os meus rancores, o câncer que prolifera em mim, toda minha revolta, só tem uma origem. A origem das origens: Deus. Mil e uma vezes prefiro Juliano, o Apóstata, a Santo Agostinho e Inácio Loyola! Ser derrotado por Ele, sabendo-o poderoso à infinita potência – uma vitória! Sabê-lo infinitamente bondoso e responsabilizá-lo pela minha desdita – a glória! Mundialmente adorável e humanamente temido e não o temer, nem adorá-lo – um prazer! Sabê-lo defendido pelos melhores cérebros que conheço e pelos irretorquíveis argumentos que os séculos veneram e não lhes proporcionar a oportunidade de defendê-lo – uma sedução!
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Até parece que o autor, pondo de lado sua fé cristã, colocou na voz de Hermano palavras que ultrajam a Deus e aos santos, preferindo ficar com Juliano, o Apostata, imperador romano (361-363), que ficou célebre pela pretensão de harmonizar a cultura e a justiça com os valores da antiga religião pagã de Roma. Não é verdade. Mais à frente, no capítulo quinto, numa bela metáfora acerca da origem das montanhas, o eu-narrador explica a Maria do Rosário:
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- Sabe de uma coisa, eu tenho uma teoria sobre a origem das montanhas.
- Muito bem!... Vejamos o que nos oferece esta cabecinha – apertei-a entre as mãos – em substituição ao vulgaríssimo Laplace...
Ela riu e imediatamente se fez séria, reprovando de brincadeira a minha zombaria.
- Não seja mau – continuou – e ouça. Preste atenção, hein! Quando a terra, nos primeiros tempos, estava se endurecendo, um bebê de quatro meses, o filho do grande poderoso Deus, um deusinho travesso de dedos bem longos e finos veio até cá, montado num cometa. O grande Deus possuía uma cavalariça de cometas, outra de ventos. Chegando aqui, o pequeno deus se pôs a fazer cócegas no ventre e nas axilas da terra, com seus dedos compridos e hábeis. A pobrezinha se contorcia toda, num corcovear fragoroso que desatou riso infantil do deuzito. E que o levou a prolongar por muito tempo sua indigna distração...
Assim, foi graças à convulsão provocada por esse moleque divino em recreio, que surgiram, na superfície da terra, dantes lisa como um lago, as cordilheiras, os montes e a nossa serra!”
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O confiteor deo do autor vem no capítulo sete, no qual demonstra sua ligação atávica com o herônimo Hermano. Fala, então, de sua crença em Deus:
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Hoje resolvi colar minha alma numa lâmina de análise. Farei o possível para saber ao certo o que sinto por Hermano. Acho que tenho o coração saturado de sentimentos incompatíveis, desconexos, bons e maus, em embrião, maduros e em decrepitude. Uma espécie de arca de noé do sentimento humanos. Não sei bem qual destes é o que me separa de Hermano. Sei que é algo diferente, poderoso, indomável e incógnito. Eu creio em Deus. Sou cristão. Na roda de meus amigos alguns até me chamam de puritano. Mas acho, talvez não tenha muito de amor ao próximo o fundo de minhas relações com Hermano.
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Outros excertos, nos quais o autor, por ele mesmo ou por meio de personagens, expressa sua catolicidade:
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A sexta-feira santa se arrastou lentamente. E a noite veio antes, com dedos empelicados, minguando ainda mais a chama rosada do sol. Talvez ansiosa por se mostrar de luto fechado, no enterro do Suserano de Todas As Luzes.
Fui à procissão. A procissão do Senhor Morto, não há melhor terapêutica para os amolecimentos da fé. Para mim é de grande efeito. As marchas fúnebres. Os sentimentos puro e robusto dos primeiros cristãos, guardado nos cânticos tocantes da liturgia. As velhinhas curvadas, de véu à cabeça, desfiando as contas do rosário. As fileiras vacilantes das velas de cera. O Cristo Morto. E a Virgem que chorou, com os olhos baixos. Multidão respeitosa, procurando sofrer a dor do Mestre, no corpo mundano e na alma rebelde.
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Eu que tenho lido muitos livros de autores cristãos, jamais tinha visto uma descrição da Semana Santa tão bela como esta.
Criticando os católicos, isto é aqueles que não seguem corretamente as regras eclesiásticas, pela voz do comunista Edson Cascadura, assim se expressa:
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- Já sei. Quero dizer, quando afirmo inexeqüível a proibição da Igreja, que o espírito de sua lei, a própria lei enfim, já que a Igreja se diz mística, é acintosamente violada pelas terrinas fumegantes das suculentas peixadas burguesas, pelos soidisant católicos, que, com alguns “Deus me perdoa” por digestivo, comem o seu bife e pelo resto, que quer comer, mas não o tem... entendido?
O autor, por meio de seu alter-ego Hermano, rememora sua vida de jovem interno no ginásio Anchieta, em Silvânia, dirigido pelos salesianos, onde assistia à liturgia da Semana Santa. Vejam que belas locuções:
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Hermano começou a conversar com a boca cheia.
- Agora mesmo estava me lembrando da Semana Santa, no internato onde estudei. Interessante! Poucas vezes me recordo desse tempo. Vocês, com essa história de Igreja, penitência, bacalhau, são responsáveis por isso. Interessante!... a alma da gente guarda tudo... que estúpida ocupação! Durante a Semana Santa íamos à Matriz assistir às principais cerimônias religiosas do dia. Aquelas mais solenes cujo ritual complicado exigia a suntuosidade de uma Igreja e não a humildade de nossa capela. Cerimônias lentas cheias de incenso e de minúcias. (...) Mas há um fato: o canto exercia uma grande influência sobre mim. E, longe de me atiçar a devoção, de me fazer prelibar as doçuras do céu, me isolava do ambiente. E me punha a imaginar cousas, obrando antropomorfismos, absurdos. Realizando, melhorando. Mas sempre agarrado à terra, como o caramujo à sua concha. O som do órgão era cavo e bonito...
Aqui está o que pude escrever sobre Maya. Poderia fazê-lo muito mais, pois a obra de Ursulino tem o timbre da modernidade, haja vista a enorme quantidade de tropos. Ao lê-la vêem-se uma enorme quantidade de construções fraseológicas, metáforas lindas, algumas delas, embora pecando pela excessividade do estilo barroco, oferecem ao leitor o cenário vivido pelo autor numa época pós Estado Novo, em pleno governo do Marechal Dutra (1946-1951), em cuja gestão se deu a erradicação do Partido Comunista Brasileiro, cujos reflexos o autor buscou mostrar por meio de suas idéias contrárias a esse regime, idéias estas que até hoje perduravam na sua formação democrática.
Maya, indubitavelmente, enriquece sobremaneira o patrimônio cultural da literatura anhanguerina.
(Luiz Augusto Paranhos Sampaio, membro da Academia Goiana de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás da Academia Catalana de Letras e da União Brasileira de Escritores. E-mail: luizaugustosam[email protected])