Sentia um temor permanente no corpo, na atmosfera. Antes de sair de casa, olhava pela janela, para um lado e para o outro, com a sensação de ver um Chevrolet Veraneio estacionado, um milico à paisana na rua, uma rua pacata, ainda com calçamento de pedras retangulares à espera de asfalto, do progresso.
Caminhava até o ponto do ônibus Carmo-Sion, levando a tiracolo uma bolsa de couro cheirando cabrito, comprada no Mercado Modelo de Salvador. Dentro dela, evitava colocar qualquer objeto suspeito. Nenhum livro que tinha na minha pequena biblioteca em quatro móbiles da Mobília Contemporânea. Evitava levar o que estava lendo, O Abajur Lilás, de Plinio Marcos e o que estava relendo, O Vermelho e o Negro, de Stendhal.
Minha mãe tinha os seus temores, mas os guardava em silêncio nas suas preces, já o meu pai era mais rigoroso. Um dia me chamou no seu escritório, trancou a porta, e falou olho no olho. Mandou que eu tirasse imediatamente o calendário da UNE debaixo do vidro que protegia a minha escrivaninha e rasgá-lo em pedacinhos. Tirar, eu tirei, picar não. Escondi. Ele me alertava diariamente, dizendo que todo cuidado era pouco.
Aconselhava não dar opinião política na escola, não falar alto o que eu pensava. Ele sabia que pessoas estavam sendo presas, torturadas, sumindo pra nunca mais. Mas nunca falou disso abertamente comigo. Ele se incomodava até mesmo com a minha juba de leão, minha calça boca de sino, minha camiseta manchada de água sanitária e os meus tamancos suecos que não tirava dos pés.
O meu irmão mais velho era diferente de mim, mais pé no chão. Trabalhava e estudava, e já tinha guardado dinheiro suficiente para comprar um fusca branco zero, coitado, que se esfacelou depois de atropelar um cavalo branco na BR-3, quase perda total. Ele era considerado um crânio, colecionava medalhas de ouro que ganhava no Colégio Marista, eram tantas que o meu pai mandou emoldurá-las com um fundo de veludo azul marinho. Eu nunca ganhei uma medalha sequer no Colégio Marista, nem de ouro, nem de prata, nem de bronze.
Às vezes, me perguntava se eu não seria a ovelha negra da família. Levei bomba em francês, repeti o ano e levei bomba de novo em francês. Eu participava do movimento estudantil, não perdia uma reunião do DCE, frequentava as reuniões secretas dos frades capuchinos, recortava e guardava numa pasta, todas as notícias que saiam sobre sequestros, manifestações. sobre José Dirceu, Vladimir Palmeira, Luis Travassos, Jean Marc Fréderic Charles von der Weid e Daniel Cohn Bendit. Numa outra, guardava os recortes sobre a RAF alemã, as Brigadas Vermelhas italianas, os Tupamaros, os Montoneros, o Sendero Luminoso e os primeiros passos dos Sandinistas.
Tudo muito escondido. A minha revolta aumentou no dia em que um tiro atingiu o peito do estudante paraense de dezesseis anos, o Edson Luis de Lima Souto, na porta do restaurante Calabouço, na Cidade Maravilhosa. Comprei a Fatos e Fotos com os estudantes, na capa, carregando o seu caixão pelas ruas do Rio de Janeiro e escondi no sótão da minha casa. Nossa casa era uma casa santa, minha mãe fazia suas novenas, acendia suas velas e rezava por nós, cinco filhos, todas as noites.
Eu tinha muito temor, temor de colocar na parede do meu quarto uma tela em óleo de Ho Chi Min, presente de uma amiga, de colocar na vitrola o compacto simples do Geraldo Vandré cantando Pra não dizer que falei de flores e de tirar de debaixo da cama aquele caixote com os livros marxistas de Apolo Heringer Lisboa. Eu tinha temor de conversar com Aretusa pelo telefone, numa época que grampo não significava escuta telefônica.
Os poucos exemplares do jornal A Voz Operária, os poucos números da Revista Civilização Brasileira, os poucos números da revista Aparte, eu guardava numa gaveta fechada a sete chaves, juntamente com a coleção da Fairplay. Eu fazia das tripas coração para não deixar o temor se espalhar e tomar conta dos cômodos daquela casa grande em que vivíamos. Falava de futebol com o meu pai, flamenguista roxo, e comprava os fascículos de Bom Apetite para agradar a minha mãe. Cuidava do pombal com o meu irmão, dos passarinhos e dos porquinhos-da-índia.
Ouvia atento e guardava para o resto da vida, as histórias do Colégio Sion que minha irmã contava quando chegava em casa. No hall de entrada, havia um mural reproduzindo a vida como as freiras queriam que fosse. Era um cartaz feito com cartolina, algodão imitando nuvens no alto e, embaixo, um colorido azul imitando um lago.
As freiras colocavam nas alturas, fotografias três por quatro das meninas mais aplicadas, aquelas que tiravam dez com louvor. No lago, quase afogando, as fotografias das meninas que corriam risco de levar bomba e repetir de ano. Um dia, fui lá ver se era verdade e era. E sai de lá gostando mais das fotografias das meninas afundando no lago, do que as meninas cdf nas nuvens. A minha guerrilha era silenciosa e particular. Imprimia um jornalzinho no mimeógrafo da escola e saia de lá cheirando a álcool. Era um jornalzinho cultural, com críticas de livros, de filmes e discos e cheio de entrelinhas. Tinha contos porque, nós mineiros, éramos todos contistas.
Lia as cartas que o Caetano mandava de Londres, via Intelsat, para o Pasquim, e tinha vontade de ir embora, pegar o primeiro avião com destino a felicidade. Eu tinha temor de ser preso, de enfrentar o pau de arara, de sumir de repente.
Foi longe, a mais de 10 mil quilômetros do meu país, que ouvi pela primeira vez Chico cantando Acorda, amor/Eu tive um pesadelo agora/Sonhei que tinha gente lá fora/Batendo no portão, que aflição/Era a dura, numa muito escura viatura/Minha nossa santa criatura. Ontem à noite, ouvi novamente essa música no YouTube e o meu temor voltou. Mas fui dormir com a certeza de que, apesar de você, amanhã será outro dia.
(Alberto Villas Jornalista e escritor, acaba de lançar o e-book "Mil Tons, o meu Millôr", pela editora e-galaxia)