No sentido consignado pelo dicionário, "ignorante" é aquele que ignora, que não sabe nada. E essa crueza de conhecimento levou ao sentido figurado que dá à palavra uma conotação de brutalidade. Daí, conhecer-se vulgarmente ignorante como a pessoa bruta, estúpida.
Um pai que em vez de aconselhar o filho castiga-o fisicamente; um descontente que pratica um ato inusitado de destruir uma coisa pelo simples fato de ela não ser exatamente do jeito que ele queria; uma pessoa que faz o filho comer até à indigestão uma comida que ele reclamou ser pouca, tudo isto está dentro do conceito popular de ignorância.
Aliás, era comum (e já registrei esse fato) castigar-se o filho fazendo-o comer, até engulhar e vomitar a comida, quando havia qualquer reclamação sobre a quantidade, que, afinal, é coisa de criança. Em minha região, isto era comuníssimo e tinha até o nome de "tarefa". Hoje, evidentemente, com o preço como andam as coisas, é temerário desperdiçar-se comida por conta de caprichos.
Ouvi falar de um velho, morador no município de Almas, vis-a-vis com o Duro, que se encontrava com um filho de sete ou oito anos doente. Sem recursos médicos, e esgotados todos os tipos de mezinhas feitas de raízes, e o menino sempre perrengando cada vez mais, o velho, conhecido com uma pessoa extremamente xucra, não contou conversa, e munindo-se de um porrete, vibrou várias porretadas no menino, matando-o, com um comentário:
- Ia morrer mesmo... Assim, pelo menos ele num sofre mais, eu não perco mais meu sono nem gasto com remédio.
Isto foi nos tempos do onça, que não cheguei a alcançar, e acho que o velho até já havia morrido quando o fato chegou ao conhecimento das autoridades.
Na Rua Nova, arredores da fazenda Santo Antônio, que meu pai tinha, moravam os irmãos Catarino e Bonifácio, que são até compadres, de tão bem que se davam.
Um dia, uma aventura meio afoita de Bonifácio (que era casado) levou-o a ficar aperreado por ter "bulido" com Ana, uma das moças dali. A moça ficou grávida, e o pai botou jurisprudência em que o casamento tinha de ser feito, chovesse ou fizesse sol. “Que minha filha não vai ficar na boca do povo”, “que tem que casar”, “que isto, que aquilo...” O receio do pai era que a moça ficasse debicada na boca dos outros.
Que fazer? O homem era casado, e o pai da moça era brabo e queria porque queria o casório para salvaguardar a honra da filha. E embora tivesse sido "bulida" por homem casado, Ana acabou casando-se do jeito que o pai queria: Bonifácio, que era casado, propôs à família da moça o casamento com o irmão, Catarino, para reparar o dano moral. O pai da moça estava disposto a ver o funeral do rapaz, se não cortasse atalho pelo casamento arranjado. E viveram bem, sempre vizinhos, e o filho nascido parece até que já se casou. Esse episódio inspirou-me o conto "Eufrásio" que publiquei em "Rua do Grito, 162", meu primeiro livro, em 1978.
Esse mesmo Bonifácio, humilde, bom, cheio de "sim sinhô", prestativo e sempre dizendo "é verdade!", "é isso mesmo!" e "tou com o sinhô!", se foi prático na solução do caso incômodo resolvido pelo irmão, já mostra outra espécie de ignorância. Quando meu pai arranjou um professor para ensinar o pessoal das redondezas a pelo menos assinar o nome, alfabetizando muita gente, Bonifácio não pôde ser convencido a botar as filhas na escola, que ficava ali quase no seu terreiro e não lhe custava dez tões.
- Botá minhas fia mode aprendê lê e iscrevê! Não, meu cumpade, isto eu num faço. Quando elas tivé leno e escreveno, vão dá é mode querê mandá carta pra namorado!
E até quando eu soube da última notícia delas, estavam analfabetas de pai e mãe.
(Liberato Póvoa, articulista)