Há um dito popular: “ficar a ver navios”, isto é, sofrer uma decepção, no abandono, sem rumos. Comigo se deu algo semelhante, mas, por uma ironia da sorte, houve o contrário: fiquei sem ver o navio, impedido até mesmo de assistir à sua partida levando minha esposa, hoje já na vida espiritual, alguns amigos e parentes para um cruzeiro com destino à Argentina.
Foi no porto de Santos, no ano de 2006, quando não me deixaram embarcar no transatlântico “Costa Romântica” de uma empresa italiana que explora o turismo marítimo nesse pobre País tão cheio de encantos, em cujo vasto e belo litoral não se vê nossa bandeira tremulando em navios de veraneio.
Sem ter recebido minuciosos esclarecimentos sobre a documentação exigida para a viagem, mas uma simples informação de que bastaria apenas o cartão de identidade-RG, não aceitando outros como CRM, CRO, CNH, etc., compareci ao cais, na tarde de um sábado, portando a carteira da OAB e a identidade emitida pelo Ministério Público do Estado de Goiás, documentos esses que trazem bem expresso o RG da identificação civil comum.
Pois bem, ou melhor, pois mal, ao me apresentar no atendimento de chegada, para o chamado “check-in” (pedante anglicismo que desnatura nosso linguajar), já com a bagagem dentro do navio, qual não foi minha surpresa quando a recepcionista me disse que os documentos não seriam aceitos para o embarque. Meu velho cartão de identidade civil ficara em Goiânia e só com este eu poderia embarcar.
Solicitei, então, uma audiência com representantes da empresa Costa Cruzeiros, que me levaram ao gabinete da Polícia Federal, onde fui recebido por seus agentes, com aquela arrogância de donos do pedaço. Expliquei-lhes que o cartão do MP não era apenas uma cédula funcional, mas uma identidade para todos os efeitos legais, contendo o RG e assinada por agente de Estado – o Procurador Geral de Justiça, cuja qualificação hierárquica é superior à de qualquer diretor de departamento de identificação de órgão da segurança pública.
Tratando-me, como se eu estivesse “dando uma carteirada” para conseguir algum favorecimento, recusaram-se a me exibir qualquer norma legal a justificar a não aceitação de meu documento e me disseram que, na qualidade de “homem da lei”, não poderia ignorar o regulamento e convenção para viagem a países da América do Sul com dispensa de passaporte.
Respondi serenamente que não estava pleiteando nada errado e que meu documento era válido e que desconhecer leis em país, onde estas são elaboradas copiosamente, seria algo até justificável, que dirá decretos, portarias, regulamentos e convenções que surgem como, partos diários, tanto é que nem eles, os agentes policiais, se dignaram a me apresentá-los.
Diante do impasse, posteriormente em conversa com os representantes do navio, estes me disseram que, por eles, aceitariam o meu embarque, mas que poderia haver imposição de multa pelo descumprimento da fiscalização dos “reis” do cais. Mostrei-me disposto até de arcar com o pagamento de uma eventual cobrança da multa, mas um reticencioso silêncio deles deixava transparecer um desejo de algo mais, ou seja, uma boa gratificação para aceitar a proposta, o que, de minha parte, não seria suborno, porque nada ilegal havia na pretensão de embarcar.
Por fim, disse-lhes que desistiria da viagem, mas com a condição de ir apenas até o Rio de Janeiro, onde desembarcaria antes de o navio zarpar para Buenos Aires. Não aceitaram, sob alegação de que, no Rio, somente haveria embarque. Zombaram de mim quando lhes exigi a devida indenização pelos danos sofridos, sob pena de a Costa Cruzeiros responder por uma ação com base no estatuto do consumidor, porquanto um simples e vago “etc” quanto á não aceitação de determinados documentos não incluiria a carteira de identidade do MP e que, na pior das hipóteses, houve falta de maior informação por parte deles e da precária agência de viagem, que sequer enviou ao cais algum funcionário para defender meus direitos.
Disseram que a demanda deveria ser contra a Polícia Federal, a responsável pela não aceitação de documento, respondi-lhes que eles é que se aviessem contra ela, por abuso de autoridade de seus agentes.
Fiquei atônito, muita coisa me passava pela cabeça. Uma emergência judicial seria praticamente impossível, pois já estava quase na hora do início da viagem. Pensei em chamar um membro do MP ao cais, mas era uma tarde de sábado e dificilmente poderia encontrar algum de plantão, por isso não levei avante a ideia. Resolvi pegar minha bagagem, depois de convencer minha esposa de seguir viagem com os parentes e amigos. Fiquei alguns dias no litoral e antes de voltar a Goiânia, tive a grata satisfação de ver publicada no jornal “A Tribuna”, editado em Santos, uma nota de desagravo do ilustre Procurador de Justiça, Dr. Benedito Torres Neto, então presidente da Associação Goiana do Ministério Público, solidarizando-se comigo por todos os dissabores sofridos.
Ao regressar do porto para o hotel, o taxista tentava me consolar dizendo que não gosta de navio porque não tem breque, e que talvez tivesse sido bom eu não viajar, pois poderia haver um naufrágio. Não fale isso, retruquei, há pessoas queridas minhas a bordo. E, por incrível que pareça, naquela noite sem dormir, a televisão estava exibindo o velho filme “Titanic”. Mudei logo de canal. Fiquei meditando: navio não foi feito para mim. Certa feita, no porto catarinense de Itajaí, insisti muito para apenas adentrar a um transatlântico, com vontade satisfazer minha curiosidade, mas diante de tanta dificuldade, desisti do intento. Meu avô materno, adolescente ainda, deixou sua terra natal, Latakia – a antiga Laodiceia da Síria -, fugindo das perseguições contra cristãos, dizia que chorou no porto do Rio de Janeiro, dias depois, quando assistiu à partida de retorno do navio, que o trouxe, cujo apito nunca lhe saiu dos ouvidos. Minha saudosa mãe, D. Cristina, sempre muito concordada com tudo, às vezes lamentava o desconforto que teve, na viagem de núpcias em 1936, a bordo de uma cabine de segunda classe, num vapor que navegava de Santos ao Rio de Janeiro – um programa de índio inventado por meu saudoso pai, apesar de sua boa intenção, quando o casal estava tão bem alojado em Guarujá nos velhos tempos de praia quase virgem, após uma viagem ferroviária na Santos – Jundiaí – uma estrada de primeiro mundo que se viu sucateada pelo abandono das vias férreas – um mal que impede o crescimento do Brasil.
Relembrei o lamentável episódio de entrega de Olga Benário, com avançada gravidez, pela ditadura fascista do Estado Novo, que, contrariando todos os regulamentos de navegação, forçou-a a embarcar em navio de bandeira espanhola, a serviço da Alemanha nazista, onde morreu em campo de extermínio.
Tão logo retornei a Goiânia, promovi uma ação indenizatória contra a Costa Cruzeiros, com modesto pedido de ressarcimento. Jamais pretendi aproveitar a oportunidade para receber mais do que o justo, até porque dinheiro algum, por maior que fosse seu valor, não seria compensador.
A empresa marítima foi condenada ao pagamento de pouco mais de R$ 5.000,00 por danos morais e materiais, em judiciosa sentença prolatada pela Dra. Andréia Silva Sarney Costa Moluzi, em 24/11/2008, devidamente confirmada pela 1ª Turma Mista dos Juizados Especiais, em acórdão relatado pelo eminente Juiz, Dr. Osvaldo Rezende Silva, que proclamou, com base no art. 17 do Decreto 5.978/2006, que a carteira de identidade emitida pelo ministério público, como cédula civil expedida por órgão oficial, substitui o passaporte comum nos casos previstos em tratado, acordo e outros atos internacionais.
Recebida a importância, fiz doação para o grupo Espírita da Paz, em Goiatuba-Go, entidade exemplar na prática da assistência aos necessitados, com fabricação de remédios fitoterápicos e manutenção de hospital para tratamento alternativo de câncer. O culto escritor e professor Raimundo Moreira Nascimento, um exímio trocadilhista somente igualado pelo saudoso Prof. Gomes filho, me disse, na ocasião: “Você doou, porque doeu”. Doeu mesmo: Eu sonhava com uma noitada portenha, vendo danças e ouvindo tangos, principalmente o meu tão apreciado “UNO” (Mariano Mores e Enrique Discépolo), cuja versão brasileira de Haroldo Barbosa é mais linda e poética do que a original em espanhol, até mesmo no título “Rosa Vermelha”, substituído por “Sonho Triste” na trilha sonora da novela da Globo (1992): “de corpo e alma” com Tarcísio Meira e Cristiane Oliveira, em que aparece a voz de Júlio Iglesias, tão encantadora como a de Francisco Alves, Francisco Petrônio, Nelson Gonçalves e Carlos Figueiras que também cantaram o tango. Eis os versos iniciais da versão brasileira: quantos são os dias de esperanças, que se perdem na distância, num crepúsculo de sonhos; quantos são os dias de incerteza destroçados na aspereza de caminhos tão tristonhos...
Na letra original do tango, aparece o verso: si yo tuviera el corazon, el mismo que perdi (se eu tivesse o coração, o mesmo que perdi), e a novela retrata alguém que perdeu a noiva num acidente e depois se apaixona por uma jovem que recebera, em transplante, o coração da falecida.
Fiquem, portanto, alertas magistrados e membros do Ministério público. Suas carteiras são válidas para viagens a países da América do Sul, mas cuidado com aborrecimentos nos portos e aeroportos brasileiros, onde a ignorância e prepotência de agentes policiais podem cometer a estupidez, contra a qual, segundo o grande filósofo e pensador cristão Huberto Rohden, de quem tive a honra de ser aluno, “até os deuses lutam em vão”.
(Vivaldo Jorge de Araújo, ex-professor de História e Língua Portuguesa do Lyceu de Goiânia, escritor e procurador de Justiça aposentado do Ministério Público Goiano)