Na obra Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, José Arcadio Segundo é o único sobrevivente de um massacre promovido pelo exército aos funcionários, em greve, de uma companhia bananeira.
Ao retornar à cidade de Macondo, onde havia ocorrido o massacre no dia anterior, Arcadio entra em uma cozinha, “atraído pelo cheiro do café”, e aí estabelece um diálogo:
— Deviam ser uns três mil – murmurou.
— O quê?
— Os mortos — esclareceu ele. — Deviam ser todos que estavam na estação.
A mulher mediu-o com um olhar de pena. “Aqui não houve mortos”, disse. (...) Em três cozinhas, onde se deteve José Arcadio Segundo antes de chegar em casa, lhe disseram a mesma coisa: “não houve mortos”.
A versão oficial, mil vezes repetida e repisada em todo o país por quanto meio de divulgação o governo encontrou ao seu alcance, terminou por se impor: não houve mortos, os trabalhadores satisfeitos tinham voltado para o seio das suas famílias.
No episódio ocorrido em Macondo, percebe-se uma das facetas da memória coletiva: ela é visada pelo poder e controlá-la é uma das grandes preocupações na luta política. E o texto de Márquez é pertinente para além dos limites da literatura, pois revela uma memória que se constrói a partir de discursos sucessivos, produzidos num contexto social determinado, que ela se constrói como um refazer e não um reviver. Nesse aspecto, há uma convergência com os estudos acerca da memória que romperam com a visão dela como conservação do passado tal como foi e introduziram a ideia de memória como trabalho.
Se Maurice Halbwachs, em seus estudos sobre a memória coletiva, frisou que ela é transmitida em um espaço de adesão afetiva à família, colegas de igreja, de partido, grupos de amigos, etc., e que ela é fundamental para reforçar a coesão social, por outro lado, em Macondo, observa-se a construção da memória coletiva pela coerção e não pela adesão afetiva. E aqui podemos notar outra de suas facetas: o seu caráter destruidor, uniformizador e opressor.
Desse modo, observa-se que o passado tem usos diversos e, também, que há variadas formas de dele aproximar-se. E uma delas, claro, é a história, a qual se afirmou como importante caminho à leitura do passado, ao menos na civilização ocidental e nas civilizações que mantêm forte diálogo com ela. Poderíamos afirmar que a história, por sua vez, em tudo, opõe-se à memória? Buscando os vestígios, as pistas infinitesimais, o historiador descobriria o massacre em Macondo e representaria o passado em um confronto com a memória, apontando os registros produzidos pelos interesses particulares (no caso, as redes de poder relacionadas à companhia bananeira) e as falsificações do passado, de sorte que a história anunciaria a verdade.
Entretanto já não nos é possível pensar a história nesses termos. A reflexão historiográfica impôs a subjetividade como inerente ao trabalho do historiador. Cada indivíduo historiador tem uma posição na sociedade, a qual — malgrado todo o rigor metodológico — produz no olhar certa miopia.
Logo, o que não se mostra mais possível é considerar a oposição entre a memória e a história em termos tão nítidos: a história como a fonte de conhecimento legítimo quanto às representações do passado, capaz de descobrir as mais sinistras maquinações da memória para encobrir a verdade ocorrida.
Por outro lado, ao incluir a subjetividade na disciplina histórica, não se afirma um caráter irracional do conhecimento histórico e, também, não se insere a história em um espaço em que ela se confundiria com a memória. Tem-se, consequentemente, uma relação imbricada entre história e memória, porém mantendo, cada uma, suas singularidades. Complexas singularidades. Vejamos alguns apontamentos.
Podemos dizer que a memória coletiva é uma corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade que nada tem de artificial, já que usa do passado somente aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a mantém. A história, por seu turno, aguça um quadro de mudanças cuja sequência dos acontecimentos revela-se marcada por descontinuidades e, assim, não hesita em introduzir divisões simples na corrente dos fatos. Ela não almeja pertencer a um grupo específico, o que lhe dá uma vocação universal. Já a memória coletiva expressa percepções do grupo visto de dentro e, normalmente, não ultrapassa uma geração, enquanto a história examina os grupos de fora e abrange uma duração bastante longa.
Enfim, ambas têm a pretensão de expressar a verdade. A memória, a verdade do grupo, com suas relevantes funções sociais; a história, a verdade, como diria Carlo Ginzburg, oriunda da capacidade de remontar uma realidade complexa não experimentável diretamente.
(Rogério Lustosa Victor. Doutor em História e professor do Instituto Federal de Brasília. Email para contato: rogeriolusto[email protected])