No ano de 1979, um dos contos que escrevi, “A Vaca Cristalina”, teve a sorte de ser premiado nos dois concursos literários em que o inscrevi: o XIV Concurso de Contos e Poemas da Revista Literária da UFMG e no II Concurso Nacional de Contos da Academia Ribeirão-pretana de Letras. Hoje, ele integra o livro “Besta-Fera e Outros Contos”.
Pois bem, esse conto retrata a história de uma vaca que, criada com o carinho dedicado a um animal de estimação, tornou-se tão humana, que entendia os sentimentos do pessoal da casa. Euclides Marques de Andrade, respeitado contista e crítico mineiro ressalta no conto a fuga à temática da violência, tão explorada hoje em dia por todos. E seu comentário acrescentou muita coisa ao conto, valorizando-o sobremaneira.
De fato, ao escrever aquele conto, eu quis mostrar que pode existir muito de humano nos animais, humanidade que logo se vincula à fidelidade. Aqui, na cidade grande, só se toma conhecimento dessa faceta animal através de livros, filmes e da TV, mas no interior perde-se a conta das demonstrações muito humanas do animal para com o homem.
Em uma de minhas férias de julho, anos atrás, por exemplo, eu vinha de Conceição do Tocantins para a fazenda de meu ex-sogro, lá pelas oito da noite, quando, de repente, os faróis do carro iluminaram um corpo estendido no meio do cascalho da estrada. Imaginei logo que fosse alguém vitimado por um mal súbito. Parei o carro, e meu companheiro, conhecedor de todo o pessoal das redondezas, não demorou a identificar a pessoa estendida, ao lado de uma garrafa vazia, mostrando que estava bêbada:
- É Raimundinho Piauí, e tá é chilado.
Como estávamos com o carro cheio, não havia condições de transportá-lo para lugar mais seguro, pois naquele ermo o pobre do Raimundinho podia até servir de comida de onça. E sugeri que ele fosse colocado ao lado da estrada, enquanto suas sandálias ficariam ali mesmo no meio da estrada, bem à vista, a fim de que algum carro que parasse, atraído pelas sandálias, visse Raimundinho e o levasse para lugar mais seguro. E saímos tranqüilos, porque era dia de festa em Conceição e a todo momento cruzávamos com gente passando de carro.
Quando nos preparamos para remover Raimundinho, seu cachorro, um vira-lata malhado de preto-e-branco por nome "Turco", avançou na gente, e a pulso conseguimos dominá-lo para socorrer seu desfalecido dono, pois o fiei cachorrinho virou onça em cima da gente.
Retirando Raimundinho para a beira do caminho, lá ficou "Turco", assentado nas patas traseiras, montando guarda, e nem bem rodamos meio quilômetro, vinha uma camioneta em sentido contrário, a cujo motorista pedimos socorresse o pobre do Raimundinho. Ao retomarmos para ajudá-lo a colocar o infeliz bêbado em cima da carroceria, tivemos o mesmo trabalho: "Turco" avançou em nós, e custou-nos muito colocar seu dono no carro por causa do cachorro. E Raimundinho, vez por outra, vivia dando lambadas de cipó nas costelas expostas do pobre vira-lata; nem por isso o animal abandonou a fidelidade, que causa inveja a nós, humanos.
Quando a camioneta deu partida veloz, o cachorrinho sumiu no rolo de poeira levantada pelo carro, procurando, inutilmente, seguir o carro.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras escritor, jurista, historiador e advogado. liberatopo[email protected])