É muito comum ver e ouvir pessoas falando sobre a crise na advocacia e que essa crise se agrava a cada semestre em razão do grande número de novos advogados que são “despejados no mercado”. Atribuem, como uma das causas, o elevado número de instituições de curso superior no país, que funcionam como meras linhas de produção de um grande contingente de novos bacharéis, sem nenhuma qualificação, nem compromisso com a honorabilidade da profissão. Nessa trágica realidade, o curso de Direito, se não é a regra, não é a exceção.
De fato, tudo isso é uma grande e triste verdade.
Entretanto, o que grande parte dos pessimistas não percebe, ou não quer ver, é que a crise que mais afeta a atuação profissional do advogado não é o quantitativo, mas a qualidade. É a crise, prevalentemente, de conceitos, de consciência. É a crise deontológica, aquela responsável por transformar o advogado, o que deveria ser o “operador do Direito”, em mero mercador que transaciona com as tragédias alheias, que abusa e trai, em nome do vil metal, a confiança e a esperança em si depositadas por algum desesperado e desesperançado que o constituiu como defensor.
Falta consciência a esses “caça-níqueis” da advocacia para que saibam que o advogado é um fiel depositário dos legados de lutas travadas ao longo dos séculos, através de sucessivas gerações, às custas de muito suor, sangue e lágrimas e que, por esta razão, o Direito não surgiu de repente, como obra do acaso; e o advogado não é um mercador.
É raro não encontrar no profissional da advocacia quem não elege como prioridade o lucro, a riqueza. Por isso, tantos reclamam da frustração de não alcançarem a rápida riqueza e a fama que a vaidade e a cobiça cobram de si, diuturnamente. Esquecem-se, ou não lhes foi ensinado, que a reputação profissional é construída ao longo de árduas dedicações e que os seus melhores aliados são a sabedoria, o tempo e uma inabalável bagagem ética. Igualmente, esquecem-se de que tudo isso, que toda uma vida profissional construída ao longo dos anos, pode levar apenas alguns segundos para desmoronar.
Creio que o principal ensinamento que deveria fazer parte da formação de cada um que pretende ser advogado é o que o conscientiza de que a compensação financeira é uma consequência, não uma meta. Muitos, lamentavelmente, invertem essa lógica. O compromisso do profissional da advocacia deve ser com a causa, não com a pecúnia. O que deve pautar a atuação do advogado é o compromisso para com os valores indeclináveis da justiça.
O advogado deve atuar com fé e crença na causa que patrocina, incumbindo-se da defesa intransigente dos reais valores da humanidade, como a liberdade, a dignidade, a honra e os ideais supremos da justiça. Por isso, a remuneração do advogado é denominada de “honorários”, do latim “honorarius”, de “honor”, que origina a palavra honra, designando uma contraprestação recebida em nome da honra e do mérito profissionais.
É possível que as escolas de Direito formem muitos maus-profissionais. Mas, é certo que os novos profissionais, no dia-a-dia forense, sejam induzidos a erros em razão de uma falsa concepção sobre o que seja, verdadeiramente, “advogado bem-sucedido”. Equivocam-se quando acreditam que velhos advogados, donos de grandes escritórios, sejam todos um paradigma de profissional a ser seguido ou imitado, pelo simples fato de ostentarem riquezas, muitas delas inexplicáveis do ponto de vista da licitude e da moralidade.
Infelizmente, o noviço advogado se encanta com o que é exibido, mas não questiona as origens, nem a forma como aquela riqueza fora obtida. Inebriado pelo brilho do ouro, lança-se, às cegas, na avidez de também obtê-lo. Muitos não imaginam – e outros o reputam de somenos importância – que boa parte desses grandes escritórios funcionam como porões sombrios onde se maquinam tenebrosas transações. Nesses ambientes, a advocacia se confunde com a conduta criminosa e o advogado não consegue se distinguir do criminoso.
Aos que pretendem agir como tal, por considerarem que os fins justificam os meios, que o façam. Mas, seria uma substancial contribuição à advocacia que demonstrassem um gesto de grandeza, de um lampejo ético, e não ousassem se intitularem de “advogados”. A atuação do advogado, de acordo com as nossas normas deontológicas, é uma atividade-meio, sem a obrigação de um resultado (fim), porém, de extremo compromisso com a legalidade, a ética e os valores supremos da justiça. Qualquer atuação fora desses parâmetros, nada tem a ver com a advocacia e, por óbvio, a autodenominação de “advogado” constitui-se numa inaceitável ofensa ao legítimo profissional.
A condução da advocacia para caminhos oblíquos é a maior causa do esfacelamento e da aniquilação moral e material da profissão. Como consequência, os próprios advogados, cegos pela ganância e indiferentes à grandeza e à honradez da profissão, transformam os honorários em gorjetas e, por se comportarem como subservientes, deixam de ser postulantes para se tornarem pedintes.
É claramente perceptível que a falta de compromisso com o estudo do Direito não ocorre apenas na fase do exercício profissional. O acadêmico, desde o início de sua investidura na faculdade, já apresenta o perfil do moderno bacharel em Direito: um indolente que fatalmente “evoluirá” para um analfabeto funcional. Este último, não será uma exclusividade da advocacia. Essa nova modalidade de idiota funcional é aquele tipo que passa cinco anos fingindo que estuda, mas que quer apenas o diploma para, depois, passar mais cinco anos nos chamados “cursos preparatórios”, decorando apostilas até conseguir ser aprovado em algum concurso público.
Os idiotas funcionais, essa praga da modernidade líquida, prolifera, vertiginosamente, e têm seus representantes também exercendo atividades em repartições burocráticas, no judiciário, no ministério público, nas polícias. Os imbecis, como perderam a modéstia, praticam essa forma bizarra de democratização e espalham-se por todos os setores. Estão por toda parte, a nos infernizar.
Há algum tempo, conseguir estágio profissional era um privilégio para os estudantes de Direito. Como existiam poucos cursos de Direito, os estudantes se dispunham a estagiar até sem remuneração, “apenas” por amor ao aprendizado e à obtenção de experiência prática. Com a proliferação desenfreada dos cursos de Direito, surgindo “quiosques” que ostentam fachada de “Faculdade de Direito”, imaginou-se que haveria o natural aumento de estudantes à procura de estágios, com a finalidade, principalmente, de compensar o baixo aproveitamento em sua formação acadêmica. Houve, entretanto, bizarra e pateticamente, o resultado inverso. A procura despencou.
Apesar da precaríssima qualidade dos cursos, da sofrível e deplorável formação acadêmica, os novos alunos (não falo estudantes) de Direito não têm interesse em estagiar. Os que procuram por estágio têm a petulância de impor condições, exigindo salários acima da média e incompatíveis com a sua capacidade produtiva, reduzidíssima carga-horária e vantagens como alimentação, transporte, férias e 13º salário. Sim, de fato, advogados existem aos montes.
Afinal, afrouxaram-se as condições para as suas investiduras e são formal e regularmente inscritos na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Todavia, em termos qualitativos, a sociedade padece da carência de boas referências quando precisa de um advogado. Aquele que precisar de um bom advogado, de um com conhecimento, domínio da área de atuação e, principalmente, que possua conduta ética e moral ilibadas, vai ter sérias dificuldades em encontrá-lo.
Houve um tempo em que quatro deveriam ser os mandamentos, os pilares, para a completa formação de um bom advogado, quais sejam: “sabere juris”, “sabere scribere”, “sabere cogitare”, “sabere loqui”. Todas essas virtudes de outrora estão sendo substituídas, modernamente, por uma única: “ser estúpido”.
As redes sociais ajudam a passar a impressão de que advogados e advogadas perderam o constrangimento, a modéstia, a ruborização, e não se incomodam mais com a própria burrice. Ao contrário. Parece até que se regozijam, disputando quem é o mais energúmeno. Tendo perdido a vergonha, dão demonstração pública de indigência cultural e promovem a “imbecilidade ostentação”.
Tudo parece estar a indicar que esse problema vai longe.
(Manoel L. Bezerra Rocha, advogado criminalista – mlbezerraro[email protected])