No conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, Jorge Luís Borges desenvolve uma discussão acerca do passado a qual é sempre um desafio para o historiador: o passado narrado representa apenas o presente?
No conto, as escolas de Tlön (planeta inventado na América) debatem os pretéritos e uma delas “chega a negar o tempo: argumenta que o presente é indefinido, que o futuro não tem realidade senão como esperança presente, que o passado não tem realidade senão como lembrança presente. Outra escola declara que transcorreu já todo o tempo e que nossa vida é apenas a lembrança ou o reflexo crepuscular, e sem dúvida falseado e mutilado, de um processo irrecuperável”.
Obviamente, a história não chega ao fantástico, negando o tempo. Mas como a história relaciona-se com o tempo? A sua estrutura textual é categoria que a coloca ante o passado como processo irrecuperável? Destacaremos, aqui, duas concepções gerais da história acerca da relação do historiador com o tempo passado e chamaremo-las de nominalista e realista.
A concepção nominalista, oriunda das reflexões pós-modernas, vê o passado como inatingível. Nesse caminho, o sentido que o discurso historiográfico produz é tido como originário das categorias da narratividade e não consegue expressar senão o presente. Se uma das escolas de Tlön fala do passado como lembrança presente, os nominalistas falam do passado como sonho presente.
De outro lado, a concepção realista considera o passado como um real que é possível alcançar. Na relação do historiador com o passado, a objetividade existe em função do princípio metódico da pesquisa. Essa visão, procedente da racionalização modernizadora, ao menos no que concerne à Escola dos Annales em suas primeiras gerações, rejeita a história narrativa. Assiste-se, portanto, ao historiador renunciar à narrativa, tida como componente de uma história estreitamente ligada aos acontecimentos e, basicamente, aos acontecimentos políticos, militares e diplomáticos — e não às estruturas — e proclamar a condução da história para o lado da ciência.
Entretanto a categoria propriamente dita da narrativa, da escrita da história, não foi problematizada. Somente na década de 1960, a partir da crescente importância da linguística nos meios acadêmicos, é que a história foi vista como texto e, assim, colocou-se que rejeitar o acontecimento e buscar a longa duração (como preconizou a escola braudeliana/2ª geração dos Annales) não significou abandonar a estrutura narrativa da história.
O historiador francês, Georges Duby, em debate com o filósofo Guy Lardreau, argumentou que não se pode imaginar uma história totalmente sonhada, situando-se, pois, no campo mais corrente da historiografia atual, qual seja, a que emprega, de modo consciente, estruturas narrativas, desvinculando-se das epistemologias realistas, mas, ao mesmo tempo, se se faz uma história como sonho presente, condiciona-se o sonho do historiador às pretensões de verdade, sustentadas pelo rigor acadêmico e pela erudição. É o que Duby chamou de nominalismo bem temperado.
Destarte, fica claro que o princípio da narratividade acarretou uma mudança no discurso moderno sobre a história, pondo em crise, inclusive, sua pretensão de racionalidade. Se a história distanciou-se do empirismo ingênuo com a absolutização da verdade, por outro lado, ela não se aproxima das vertentes anunciadas pelos pós-modernos, nas quais à história seria negada toda a pretensão de objetividade científica.
Assim sendo, como conciliar a limitação meta-histórica da narratividade como princípio do pensamento histórico, que dificulta qualquer objetividade científica na representação do passado como história, com as atitudes e procedimentos acadêmicos bem estabelecidos dos historiadores tradicionais, com a pretensão de objetividade?
Em seus estudos acerca da razão histórica, Jörn Rüsen, intelectual alemão contemporâneo, aproximou-nos da possibilidade de superar tal ambiguidade. Ele concluiu, e nós com ele, que, como não existe uma racionalidade única, mas sim diversos tipos de racionalidade, trata-se, agora, de desenvolver um tipo de racionalidade da constituição histórica de sentido na forma de um paradigma que resista à crítica feita à racionalidade até o momento dominante no pensamento histórico moderno e que se exprima em pretensões convincentes de racionalidade.
(Rogério Lustosa Victor. Doutor em História e professor do Instituto Federal de Brasília. Email para contato: rogeriolusto[email protected])