Luiz Carlos Bordoni
Os filhos da fome de 1876 a 1899 desapareceram. Os nossos historiadores que escrevem sobre a história mundial do século XIX têm ignorado as grandes secas e fomes de fins da era vitoriana que engoliram o que hoje chamamos de “Terceiro Mundo”. Cerca de 50 milhões de pessoas morreram de fome, dois milhões eram nordestinas. As grandes fomes são as páginas que faltam. As da verdade sobre o cangaço, que tanto inspiraram Che, também.
Afinal, de que cangaço nós falaremos? Do brasileiro, do chinês ou do indiano? Sim, porque os três tiveram o mesmo pai, El Niño, o Senhor das Secas, e a mesma madrasta, a Inglaterra. Foram paridos ao mesmo tempo, por suas mães tão gentis, que acabaram prostituídas pelos rufiões da colonização, vítimas de tão vergonhosa violência social, que apenas uns poucos se recusam a esquecer – e este é o nosso caso. Eis a razão da busca do verdadeiro significado do cangaço, e só o teremos na sua tradução completa, sem a maquiagem da indústria do turismo e sem a paixão regionalista, indo de encontro aos fatos, e não das versões que o mitificam e mistificam.
China, 1877. Fronteira do Shandong. Finda o inverno, começa o inferno: a seca. Com ela, a fome, o êxodo. Os chings usam tropas, rechaçam e massacram refugiados. Mais de 90 milhões passam fome numa área pouco maior que a França. Há canibalismo e banditismo. Esqueletos humanos estendem-se ao longo das estradas. Cadáveres jogados nas “valas dos dez mil”. No início, os vivos alimentam-se dos corpos dos mortos; em seguida, os fortes devoram os fracos; na privação geral, os homens devoram os de sua própria carne e sangue. Sete milhões de mortos no vale do Wei, e mais 5 milhões em Shanxi”. De fome, sem providências do governo colonial. Surgem os bandos armados na luta pela comida, contra a injustiça social, contra a “canga” do colonialismo britânico. Nascia o “cangaço de olhos rasgados”.
Índia, 1877. Os armazéns britânicos estão abarrotados de grãos. Indianos morrem a poucos metros dos trilhos das ferrovias por onde passam vagões transportando comida. Mulheres e seus filhos famintos são marcados a ferro em brasa, torturados, têm os narizes cortados e, quase sempre, são mortos. Crime: tentar roubar o que comer. O vice-rei, Lorde Lytton, um déspota ilustrado – mais canalha que ilustrado –, faz da Índia um gozo necrófilo. Decreta expropriações econômicas contra os comerciantes de grãos, e cria o seu “Seguro da Fome” (imposto territorial sobre o campesinato), cujo dinheiro arrecadado nunca se viu, bem como os lucros das exportações de grãos, controladas por senhores da nobreza britânica. Quando o peso da canga fez dobrar os joelhos do camponês, a reação foi imediata. O cangaço indiano, um ressuscitar dos sipaios despedaçados nas bocas de canhões ou se contorcendo em florestas de forcas, eclodiu com um revide brutal à expropriação da dignidade, da honra, da vida de milhões de famélicos. Para os cangaceiros da velha Índia, o som de seus fuzis era a sua Bhagavad Gita – a sua Sublime Canção.
Brasil, 1877. Sopram os ventos da seca. Os padres oram ad pretendam pluviam em todas as igrejas. Deus não manda a chuva; e manda El Niño, dez anos depois de Canudos. Quinhentos mil sertanejos haviam acabado de morrer de fome e varíola. O Nordeste é brasileiro, mas os ingleses mandam ali. Desmatam, querem algodão. Agridem a cadeia ambiental. A seca é o troco. A fome, dos outros, é a paga. Os sertanejos, “os homens mais honrados do mundo”, agora roubam gado, saqueiam fazendas e povoados. Os pobres ocupam o poder por um breve período, em Quixeramobim, advertindo que “não é justo morrer de fome, sabendo que é só nas casas dos ricos que estão o dinheiro e a comida”. Os conservadores dizem que “é castigo de Deus”, e os espertalhões criam a “indústria da seca”. Comerciantes malandros obtêm lucros fantásticos sem reduzir em nada a fome no interior. A fome sem Deus é o Diabo! Chega de canga! Surge o cangaço. João Calango e seu bando rompem o insustentável limite da tolerância, mas é Jesuíno Brilhante o primeiro cangaceiro a atacar comboios do governo que transportam alimentos e distribui toda a comida aos necessitados.
A maldição do “duplo sete”
Não fiquem assustados com as estúpidas decisões de Tony Blair. A Inglaterra, ab initio, é hipócrita, dada ao prazer de sugar, até a última gota, o sangue de seus dominados – coincidência ou não, era inglês o autor de Drácula, Bram Stocker. Ter lido quem não há de!
É questão de saúde para a história inglesa não mexer muito abaixo da superfície quanto ao período do “duplo sete” – pois temos aí o maior genocídio dos últimos tempos, e que, para aliviar a sua cruz, a Bretanha diz ter sido culpa da meteorologia desajustada e os efeitos do El Niño.
Os dados científicos dos estudos sobre climatologia confirmam: é verdade, o El Niño foi o causador da grande seca. Mas não foi ele quem sonegou comida a chineses, indianos e sertanejos brasileiros. Para punir esta madrasta perversa causadora de milhões de mortes, El Niño pode ser, sim, o pai do cangaço. Palavras de Cícero, o padre de Juazeiro: “Deus há de prover o que a Terra não der, através da caridade dos homens”. Eis o que faltou aos senhores do poder.
Para Gilberto Freyre, em suas linhas insuspeitas, o “apocalíptico duplo sete” (de 1877) é a “síntese dramática” e em silêncio, na memória brasileira, das tragédias conjuntas da seca e do subdesenvolvimento. Mas algumas áreas governamentais do Nordeste descobriram que a “indústria da seca” era muito mais lucrativa, sem o dispêndio de qualquer esforço, que os produtos básicos regionais básicos em declínio, casos do açúcar e do algodão.
E por que, quando não há comida para todos, ao invés de suprir a falta, mais fácil é suprimir as bocas, nada melhor do que fazer negócio com os ingleses da Sainglehurst, Brocklenhurst and Company. Esta megastore britânica encravada em Fortaleza forneceu imensas quantidades de mantimentos ao governo e transportou milhares de retirantes para a Amazônia em seus navios a vapor costeiros. Havia muita comida do governo a ser desviada em benefício dos políticos e dos coronéis, e havia muitos pobres a serem exportados para a grande, desconhecida e inóspita floresta.
Não diferente dos industriais da seca, os grandes canavieiros fizeram fortunas com as lucrativas concessões imperiais de colocar, temporariamente, os refugiados da seca para trabalhar. Estava instalado, assim, o precedente que permitia que os coronéis nordestinos saqueassem a ajuda ao desastre. O “desenvolvimento” tornou-se apenas um eufemismo para subsidiar uma ordem social reacionária, tanto que naquele e no século seguinte, findo há quatro anos, grandes verbas do “socorro à seca” desapareceram no sertão, sem deixar atrás um único canal de irrigação ou um açude adequado para socorrer a sofrida população.
Mas o duplo sete significou o início do fim da escravidão no Brasil. Gado, terra e mão-de-obra gratuita no sertão se tornaram substantivos concretos sem valia. A venda de escravos para o Sul, com a exportação de mão-de-obra gratuita para a Amazônia, gerou uma obscena prosperidade em meio à catástrofe geral.
“O barão de Ibiapaba, Joaquim da Cunha Freire, por exemplo, lucrou muitíssimo, pois era o principal exportador de navios de cargas humanas de Fortaleza e Mossoró. Só de Fortaleza, consta que vendeu pelo menos quinze mil escravos para o Sul” – registra Herbert Smith, em obra editada em 1879.
Em 1878, dos 800 mil habitantes do Ceará, 120 mil foram colocados em marcha rumo ao rio Amazonas, porém, menos da metade pôde chegar; os demais foram caindo, abatidos pela fome ou pela doença, nos caminhos do sertão ou nos subúrbios de Fortaleza.
Estávamos ainda a dez anos da abolição da escravatura pela princesa Isabel (que foi surrada pelo marido, o Conde D’Eu, “pela imbecilidade cometida”), quando soubemos que a primeira lei a proibir, expressamente, a escravidão no Brasil não era brasileira. Não por casualidade, era inglesa. O Parlamento britânico já a havia votado em 8 de agosto de 1845.
Em 1877, escreve o farmacêutico cearense Rodolfo Teófilo: “O mercado de gado humano esteve aberto enquanto durou a fome, pois compradores nunca faltaram”. Foi contra a fome e, mesmo sem saber o seu significado literário, pois conhecia os seus efeitos nos ossos ambulantes e nos corpos espalhados ao longo dos caminhos da retirada, que o cangaço emergiu com voz de fogo cuspida pela boca de suas carabinas contra a doutrina do darwinismo social e o utilitarismo britânico.
O que é o cangaço?
Os melhores estudos desenvolvidos no Brasil, até porque a história oficial prefere reduzir o episódio em mera ocorrência policial, em que o Estado se impôs para se fazer cumprir a lei e a ordem, são encontrados na Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço, SBEC. Esta é uma entidade que reúne pesquisadores, professores, historiadores, para a reconstrução do fenômeno social ocorrido no Nordeste brasileiro, como bem a define Paulo Gastão, um de seus membros efetivos que esteve em Goiânia, recentemente, para o XI Congresso Brasileiro de Folclore, justamente para discorrer sobre tão palpitante episódio das lutas sociais ocorridas no País.
À História, quando perguntamos o que é o cangaço, a resposta é simples: “é a vida ou atividade criminosa dos bandoleiros andarilhos dos sertões nordestinos do Brasil. A palavra deriva de canga – jugo de madeira com que se jungem os bois. Os apetrechos usados pelos cangaceiros, cruzados ao peito, lembram a canga do boi. Cangaceiro é, assim, o indivíduo que se dedica a este tipo de vida”.
Resposta certa? .... Errada. Primeiro, porque as bandidagens de Teodósio Joaquim Gomes e José Gomes, o Cabeleira, em 1776, ano em que ambos foram enforcados em Recife, nada têm a ver com o cangaço. Jesse James do sarapatel.
Segundo, Lucas da Feira, filho de escravos, que forma bando em 1822 e, antes que fosse enforcado, o imperador Pedro II fez questão de conhecê-lo, lutou contra a escravidão negra, matando capitães-do-mato e alguns sinhozinhos canalhas que estupravam as negras jeitosas – as mucamas de seus prazeres.
O primeiro sentimento anticanga, com identidade de cangaço, foi manifestado em 1875, com Adolfo Meia-Noite, um pernambucano de Afogados e que foi morto na Paraíba, depois de diversos confrontos com a polícia. É esta, sim, a guerrilha social começando a palpitar.
Em 1877, bandos de retirantes, castigados pela seca e pela fome, invadem e saqueiam povoados. João Calango organiza o primeiro bando de cangaceiros. Ante tal status quo, o cangaço emerge como a boca, o estômago, a vida do sertanejo. Jesuíno Brilhante foi brilhante cangaceiro, de fato e de direito, e mais que Virgulino, pois tomou aos “industriais da seca” – aos aproveitadores, atravessadores, políticos, coronéis etc. – a comida que faltava na barriga dos excluídos, desesperançados, humilhados e esquecidos. Foi com ele que começou a fragmentação da autoridade civil nas províncias do Nordeste. Depois dele, vieram Antônio Silvino, Sinhô Pereira...
Lampião, pouca prosa, muita bala e muitos versos
Ano de 1922. Foi pelo bando de Sinhô Pereira que ingressa no cangaço, por razões de vendeta, o peão de boiadeiro, sanfoneiro (autor de Mulher Rendeira) e exímio artesão em trabalhos com o couro, Virgulino Ferreira da Silva.
Lampião, o epíteto, nada tem a ver com cano vermelho em brasa de seu fuzil, tantos eram os tiros que dava em pouco tempo. Nasce o apelido do fato de que, quando saíam à noite, era o que melhor enxergava no escuro e, por isso, ia sempre à frente dos demais. O pai lhe coloca o apelido: “Vai à frente, lampião”.
Três anos antes, em 1919, desavenças com a vizinhança resultam em rixa e mortes. Virgulino e os irmãos Livino e Antônio fogem, viram assaltantes. O quarto irmão, o inocente João, é preso. O pai, José Ferreira, durante a fuga, se hospedada na casa de um amigo. A polícia o descobre e ele é morto a sangue frio por um policial. Virgulino, diz a lenda, teria jurado: “De hoje em diante vou matar até morrer”.
E é o que faz. Usa-se e é usado por coronéis. Atendendo pedido do Padre Cícero, então vice-presidente da Província do Ceará, compromete-se a se juntar às forças legalistas para enfrentar a Coluna Prestes. O padre lhe dá a patente de capitão, e, o governo, armas novas, modernas, e muita munição. Esnobado pelos paulistas e mineiros, que não reconhecem a sua patente, Virgulino volta para o sertão, onde se faz máquina mortífera.
Paulo Gastão, da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço, o tem como “um produto do seu meio, guiado por fatores ligados à vida do sertão, como ignorância, secas, ausência de governo e de Justiça”.
O código de honra do mesmo meio do qual ele seria produto não culpabiliza os homens que matam por vingança, mas enaltece sua coragem. Mas quem Virgulino teria vingado, para ter a coragem enaltecida em prosa, versos e repentes? Ninguém, e os fatos o provam. Afinal, o homem que matou o pai dele está vivo e saudável, quando o já então mitificado Lampião é morto e degolado em Angicos.
Virgulino mata por autoafirmação, pois fracassa em todas as tentativas de liquidar com o policial alvo de seu ódio e vingança. Descarrega seu ódio em inocentes. Comete as maiores atrocidades contra homens e mulheres, numa conduta que não o credencia ao título de “rei do cangaço” – título resultante do marketing que incute em amigos dados à literatura de cordel ou ligados aos jornais da região.
De 1922 a 1938, Lampião assalta, saqueia e mata em sete Estados do Nordeste. Em Mossoró (RN), a população o coloca e aos seus 120 homens para correr, e ali nunca mais põe os pés. Não pode ser rei do cangaço quem não é cangaceiro – e o homem de Maria Bonita não é diferente de Cabeleira e Teodósio: bandoleiro, sim; cangaceiro, nunca.
Nenhum episódio da vida de Lampião dá-se em defesa dos fracos e injustiçados. Ele diz que se vinga de quem o persegue, mas isso não é vingança, é defesa. Em 1930, o governo baiano oferece uma recompensa de 50 contos de réis pela cabeça de Lampião. Ele passa a agir mais em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, com algumas incursões por Sergipe. O Capitão Virgulino Ferreira da Silva é a morte em constante movimento, estratégia que dificulta a sua localização pela polícia. A parada mais demorada é em Angicos. Para sempre.
Lampião em Champs Ellisées
Ela sequer imagina que pudesse ter existido o tal Lampião, quando chega a Recife, em 1991. Não demora a conhecer a história de uma personagem tão bem construída e intencionalmente mitificada, em que a lenda se confunde com a realidade e o Diabo, de repente, se faz Deus.
Livros de cordel, filmes, músicas, bonecos de barro, todo o universo do cangaço e dos cangaceiros começa a invadir o cotidiano da francesa Élise Grunspan-Jasmin, jovem historiadora, formada em história da arte, com especialização em fotografia. Mas ela encanta-se com o bandido que se banhava em Madeira do Oriente, perfume barato, mas que os historiadores substituíram pelo francês Fleur D’Amour.
Oito anos depois, ela defende a sua tese de doutorado em História, na Universidade de Paris IV, com o título “Lampião, seigneur du sertão: vers. 1897-1938”. .
A monografia é premiada com o "Prix Le Monde de la recherche universitaire", e transforma-se no livro Lampião, vies et morts d’un bandit brésilien. O “bandido brasileiro” do título explica bem ao público francês quem é o tal "senhor do sertão" da tese.
Élise diz ter cedido à proposta de chamar Lampião de “bandido brasileiro”, o que parece, à primeira vista, sedutor para quem conhece de perto as contradições de um personagem complexo, que se tornou um "fora da lei" para cobrar justiça para seu pai injustiçado – é o seu argumento.
Obviamente, que a proposta não foi honesta, se colocada em tais termos, pois Lampião se fez um “fora da lei” porque não conseguiu justiçar a morte do pai.
A autora passou quase dez anos no Nordeste, mas parece não ter atentado ao fato de que justiça em terra de coronéis é feita pelos coronéis, ou pelos vingadores, errônea ou equivocadamente chamados de “cangaceiros de vingança”.
Cangaço não é bandidagem, é revolta, é revolução. Cangaceiro não é bandido, é revoltado com as desigualdades e as injustiças e, por isso, é um revolucionário. A Lampião não cabe o cetro de “rei do cangaço” e nem mesmo a condição de cangaceiro.
Aos que banalizaram a luta e o repúdio à canga e aos dominadores; aos que deram ao cangaço e ao cangaceiro novos significados e novas significantes; cabe a responsabilidade pela subtração dos reais valores do cangaço como sublevação contra as desigualdades e a injustiça e pela nefasta contribuição ao fortalecimento dos industriais da seca, à manipulação da história da resistência do sertanejo ao dominato, e à permanência do sofrido e explorado Nordeste brasileiro como o eterno Inferno de Dante.