As histórias sobre assombração em Inhumas e cidades vizinhas
Redação
Publicado em 9 de abril de 2015 às 02:31 | Atualizado há 10 anosHailton Correa Especial para Opiniãopública
Esse foi o tema de meu trabalho de conclusão de curso, apresentado no ano passado no curso de Letras, pela UEG de Inhumas.
Antes de falar do trabalho em si, cabe deixar às claras a motivação de se buscar um tema tão insólito. Antes de escolhê-lo, num trabalho de “garimpagem”, estive diante de várias possibilidades. Por exemplo, passou-me pela cabeça falar da, na minha opinião, maior obra da literatura brasileira, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Analisando melhor e sabendo que tantos e tantos já o fizeram, cheguei à conclusão que não, não seria o tema ideal. Depois quis falar sobre as gírias, palavras e expressões típicas no ambiente carcerário. Também não. Talvez estudar letras de músicas, pesquisando as influências de um artista como Renato Russo, por exemplo. Não. As possibilidades de tema vinham e eram descartadas, uma a uma.
O início do encontro com o tema, que dá título a esse texto, se deu num diálogo com a professora Vera Paganini sobre os causos de enterros de ouro, tão típicos em nossa região. Entre os contadores, pessoas comuns, comecei uma pequena pesquisa, se elas se prontificariam a contarem suas histórias ou as histórias que soubessem. Pouquíssimas aceitaram ter suas vozes gravadas. Era insuficiente para a pesquisa. Mas estando a centelha acendida, o “eureca” se deu num pulo. Ampliar o tema. Fazer com que tais histórias sobre enterros e desenterros de ouro fossem apenas um dos segmentos. Sim. Histórias sobre assombração. E mais: Em Inhumas e cidades de vizinhas. Tinha encontrado o tema ideal, em que pudesse fazer pesquisas, ouvir as pessoas, e, acima de tudo, valorizar as nossas raízes. Confirmou-se assim ser o tema que procurava.
Pé na estrada. Casas foram percorridas. Algumas de conhecidos, outras não. Gravadas as histórias, deveria transcrevê-las e ao mesmo tempo ler as bases teóricas que sustentassem o trabalho. Foi árduo, mas prazeroso. Um ano inteiro dedicado aos estudos, noites e noites em claro. Tudo conforme orientação brilhante da professora Vera Paganini. Compensador.
Ao final, os resultados. Partindo de um plano amplo, as histórias coletadas se identificaram de algum modo com os primórdios da literatura mundial. Um feixe de informação cruzaram o tempo e o espaço. Desde a Grécia antiga, dos clássicos de Homero e os rapsodos, passando pelos irmãos Grimm, houve a presença de eventos gestados na cultura popular, que ia de boca em boca, de geração a geração. É a força tamanha do imaginário, das crenças e de outros tantos aspectos que tangenciam a proposta. Em seguida, passando por Portugal, esses aspectos tiveram grande importância na cultura, e, portanto, na formação da sua identidade pátria.
De Portugal ao Brasil. Aportando em nosso país, demonstrou o trabalho que em obras como “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, traz consigo traços de oralidade, das ladainhas, ou seja, aspectos populares. Em “Macunaíma”, de Mário de Andrade, também encontramos muito de nossas lendas, de nosso imaginário, e sobre o brasileiro e sua busca pela identidade. Ademais, chama atenção o uso da linguagem, que parece a quem lê estar sendo contada oralmente. Foram duas obras citadas para demonstrar que dois cânones de nossa literatura nacional se prestaram a valorizar, nas obras citadas, o que vem do povo.
Do cenário nacional para o regional. Nossa poetisa maior, Cora Coralina, também valorizou, tanto na prosa quanto no verso, os bens populares, a gente simples e as histórias de assombração. Parecido, também o fez Hugo de Carvalho Ramos com “Tropas e Boiadas”, cuja sensação que se tem ao lê-lo é a de estar em meio a uma roda de peões. E assim como faz quem conta histórias, a recorrência à memória acontece o tempo todo em ambos os exemplos.
Mundial. Nacional. Regional. Escalonando assim, chega-se, enfim, a solos locais.
Em todas as histórias de assombração colhidas em Inhumas, Itauçu, Nova Veneza e Santa Rosa, que elencam o apêndice do trabalho monográfico, encontraram-se traços universais, elementos característicos, próprias da cultura dos povos ao longo da história.
Sobre os arquétipos, “conteúdos do inconsciente coletivo”, de acordo com Jung, luz e escuridão estão entre os elementos mais identificados nas histórias catalogadas. As luzes vistas durante a noite pelas pessoas, cortando o céu goiano, abre leque para o imaginário, a liberdade de atribuir cada evento a determinada causa.
Sobre os temas detectados nos relatos, certamente pela natureza do trabalho, o medo é mais comum. Um dos trechos das histórias diz o seguinte: “Mas eu vou falar pro cê: nunca tive medo na minha vida igual esse. Esse, eu tive medo mesmo. E sabendo que a hora que eu conversei com ele, pra mim, ele estava vivo, depois é que eu lembrei que ele morreu, né? Pro cê ver o que é que é a história: isso é um trem… não é espírito mau, porque ele conversou numa boa, né? Depois que ele sumiu, que eu fui lembrar que ele tinha morrido”. Ainda dentro dos temas, pode ser apontado o sobrenatural, explicando a causa dos medos. Sendo sobrenatural o desconhecido, aquilo que a razão nem a ciência conseguem explicar, o medo desencadeado diante dele é o pior dos medos, segundo Howart Philips Lovecraft. Por ser assim, o cruzamento medo/sobrenatural ficam evidentes e patentes nas histórias locais colhidas. Cada uma delas traz consigo doses de emoção diante do mistério.
Versando a respeito do sobrenatural, encontra-se nele raízes de religiosidade. A ideia de culpa e punição são fatores que chamam a atenção. As assombrações, em algumas delas, tardam a deixar o mundo por algum voto feito, algum castigo ou porque enterraram ouro. Por assim dizer, pode-se detectar o quanto é influente a religião e determinante para que tais afirmações se configurem. A intenção do trabalho não foi a de julgar bom ou ruim tais influências, e sim, a de reconhecer e apontá-las nos relatos.
Além desses e outros elementos, que ligam e conversam com um passado tão remoto, uma característica salta aos olhos. É a incrível capacidade das pessoas em narrarem as passagens. E esse foi um dos pontos altos da pesquisa, em que meus olhos brilharam quando estava gravando e durante a transcrição. O desenvolvimento das histórias é natural, gostosas de ouvir. A oralidade é cercada de gestuais, posturas e reações. Um despretensioso comparativo. Quem escreve tem tempo para mudar a estrutura das histórias, estudar o efeito que essa cause no leitor. Quem escreve tem tempo para criar e desenhar as personagens ao sabor do pensamento. Quem escreve tem o depois para continuar. Quem conta, não. Depois de terem suas vozes gravadas, nenhum dos contadores ou contadoras, que colaboraram para a pesquisa, pediu para contar de novo, para corrigir isso ou aquilo, ou para que eu voltasse no outro dia.
Por fim, pode-se dizer que a monografia tenha cumprido seu papel dentro da proposta inicial. De que forma poderíamos fortalecer a identidade cultural de nossa região através dos estudos das histórias sobre assombrações? Por meio de levantamentos e estudos pôde-se fazê-lo. E mais: não apenas delas, mas de muitas outras manifestações que, por tradição, fazem parte de nós. Buscar entre a gente o objeto de estudo é, acima de tudo, entender e valorizar nossas raízes, antes que o tempo passe, as coisas mudem e muito dessa cultura se perca.
(Hailton Correa, agente prisional, graduado em Letras pela UEG/Inhumas e escritor. Colaboração: Vera Lúcia Paganini Contato: [email protected])