As “reminiscências” do Raimundo XVIII
Diário da Manhã
Publicado em 16 de fevereiro de 2018 às 22:38 | Atualizado há 7 anosA Corta e ‘Dr.Albertino’ – O Governo sempre teve um grande desafio, – a navegação do Rio Araguaia. Havia imenso interesse quanto à ‘navegabilidade’ do extenso Rio Araguaia. Um Rio muito largo, porém um tanto raso e, por isso mesmo, caracterizado por inúmeras cachoeiras de porte, bem como inúmeros travessões (pequenas cachoeiras). Formava muitas praias na época da seca, por ser um rio de média profundidade. Seria considerado navegável para embarcações durante as cheias. Durante a seca, é o rio das lindas praias infindáveis, para deleite de numerosos turistas de todo o País.
Pouco depois de nossa chegada a Conceição do Araguaia, chegou por lá um senhor de nome Dr. Albertino. Um senhor de estatura alta, corpulento, de boa aparência, fala mansa, parecendo bem preparado. Tanto é que se dizia chamar ‘Doutor Albertino’. Trazia de carga diversos rolos de cabos de aço, enrolados em imensos carretéis. Dizia que era material para ser utilizado no Rio Araguaia, para melhorar a sua navegabilidade. Parece que falavam até em dragagem daquelas areias brancas e abundantes, que, durante o período da seca, transformavam-se em nossas praias paradisíacas.
Anteriormente, naquele rio magnífico, já havia sido experimentada a sua navegabilidade, desde a atual Aruanã, – antiga Leopoldina, nome dado àquela localidade em homenagem à Sua Alteza Imperatriz Dona Leopoldina, esposa do Príncipe Dom Pedro I, pelo então jovem Bacharel em Direito José Vieira Couto de Magalhães, Presidente da Província de Mato Grosso. Como houvesse passado pela Província de Goiás, quando nomeado, aos 26 anos de idade, resolveu fazer estudos quanto à possível navegabilidade daquele Rio, – o Araguaia, com o fim de promover a integração daquela Província do Centro-Oeste, portanto, da região interiorana ao litoral deste imenso País, com a bela cidade de Belém, Capital do Estado do Pará. Nos estudos preliminares, com o auxílio do Engenheiro Francês Ernest Vallée, chegou-se à conclusão de que a navegabilidade do grande Rio era não só possível, como recomendável. Para tanto, adquiriu-se um navio a vapor de uma extinta Companhia de Navegação do Alto Paraguai, fazendo-o descer pelos Rios Cuiabá, São Lourenço até a barara do Piquiri. Aí, desmontou-o, e suas peças foram colocadas em 19 carros de bois e levadas até o Porto do Itacaiú, já no Rio Araguaia, a 30 léguas da Cidade de Goiás, Capital da Província. E a 29 de maio de 1868, foi batizado com o nome ‘o Araguaia’, e colocado em funcionamento. E nessa primeira viagem, o governador idealizador fez parte da histórica tripulação, e percorreu o trecho que iria fazer parte daquela pioneira estrada fluvial de mais de 600 Km, compreendendo o trecho de Aruanã a Belém do Pará.
Um ano mais tarde, a Companhia de Navegação do Araguaia e Belém do Pará, liberava aquela notável nota fluvial ao público, – via de regra ribeirinhos, – mantendo-a por mais de três décadas, ou seja, até o início do Século XX. E 50 anos depois, a navegabilidade daquele majestoso Rio continuava uma obsessão. Isso ainda lá nos idos de 1950, 1960. E por que não dizer, até hoje! Porém, para torná-lo navegável, no meu entender de leigo, seria necessária a construção, em quase todo o seu percurso, de várias barragens, eclusas, e o conseqüente aumento da profundidade do seu canal, o que resultaria na extinção de suas encantadoras praias, dádiva da natureza por estas bandas, e motivo de muito orgulho dos centroestinos e nortistas. Por lá, o Dr. Albertino ficou muitos anos. Chegou até a ser proprietário rural. Comprou uma pequena propriedade de Papai, pela qual se passava para ir-se, a pé, ao ‘Pé de Buriti’. Mas, posteriormente, passamos a transitar por outro roteiro, mais fácil. Eu só sei dizer que, durante todo aquele período que passei em Conceição do Araguaia, nenhum serviço foi realizado ou, pelo menos, concluído, nesse sentido. Ele nos dizia sempre que estava esperando uns Engenheiros para começo dos trabalhos. E esse dia nunca chegava. Os cabos só não enferrujaram porque eram de aço, cobre ou alumínio, mas já estavam bastante danificados e precários. Acredito que não serviam para mais nada. E o Dr.Albertino, não passou de um pequeno sitiante. Era até compadre de Papai. Tinha um bom relacionamento na sociedade e com e com a nossa família.
‘O Problema da Malária’ – Por ser, aquela, uma região muito insalubre, o Governo estava sempre atento no combate aos causadores de moléstias. Uma dessas doenças que estava sempre provocando endemias era a funesta ‘malária’. Era um combate sistemático. Era uma região de muita mata e água abundante.
Um desses efetivos que estava sempre por lá, áliás, que por lá morava, era o senhor Milton. Deste, eu me lembro bem, porque, nas suas folgas, ele costumava ser o aplicador de injeções nas pessoas. E a gente tinha sempre contato com ele. Era o filho do senhor Miguelzinho, do SPI, – Serviço de Proteção aos Índios.
Era uma doença que causava muito mal, e que até acometia a muitos daquela agente do Norte de nosso grande e rico país, também conhecida como maleita.
Eu não fui uma exceção. Apesar de morar na cidade, também fui vítima daquela maldita moléstia. Só que em grau mais suave. Ela era mais impertinente e persistente, e por que não dizer, mais perigosa, nas matas ainda virgens, daqueles Estados do norte! Pará, Amazonas… Muita mata, muita água.
Naqueles dias, eu estava com o corpo um tanto indisposto e, sobretudo, quente. Eu ia me agüentando. A gente não clamava por pouca coisa. E, mesmo assim, naquele dia, resolvi ir pegar umas mangas numas taperas – antigas moradas, já abandonadas -, e onde ainda existiam muitos pés de manga e jambo. Era na região sul. Chamava-se ‘Justo’. Era um local frio, com nascentes d’água e um mangueiral, com alguns tipos delas.
Enchi um saco de mangas, quer maduras, quer ‘de vez’. Chupei um bocado delas, e já sentindo um calafrio anormal, o corpo em brasas, o rosto queimando. E mesmo sabendo, pelos mais velhos, que manga não combina com febre, eu já me sentindo com todos aqueles sinais da maldita malária, continuei saboreando as doces mangas, muito gulosamente, como sempre. Após me deleitar com aquela fartura, é que enchi aquele grande saco com as belas frutas, apetitosas mesmo! A seguir, parti para a cidade. Morávamos no Centro. O ‘Justo’ ficava na periferia, fora do perímetro urbano, lado Sul. Quando coloquei aquele pesado fardo nas costas – eu, com apenas meus 15 anos, naquele estado febril -, não conseguia sequer caminhar em linha reta. Percebi, então, que eu não me encontrava em estado normal. Jamais me tinha acontecido coisa igual. E esse ziguezaguear foi constante em todo o meu percurso. A estrada e a rua eram estreitas para mim. No meio do caminho, as mangas começaram a cair, acho que o saco estava muito cheio, e elas foram caindo em quase todo o percurso. Eu não dava conta de baixar e pegá-las. Caso tentasse, eu cairia, e não conseguiria levantar-me.
Assim, eu fui deixando as mangas pelo caminho afora. Ainda bem que o saco ia ficando cada vez mais leve. Foi minha salvação. E aos trancos e barrancos, cheguei em casa. O saco estava lá pela metade.
Lá em casa, relatei a ocorrência a minhas irmãs e à minha ‘Madrinha’ que, muito atenciosa, como sempre, me medicou e, assim, me aliviou. Parece-me que me ministrou um comprimido de um medicamento de nome ‘Aralém’. Era um dos medicamentos, para aquela doença tão infeliz, que vitimou tantas pessoas, pais de família, seus filhos que não obtinham tratamento imediato e adequado. Dentro de poucos dias, eu já estava salvo daquela insidiosa moléstia que tanto me atazanava, e ainda maltrata – embora em menor escala, é claro, os nortistas, sertanejos especialmente. Os habitantes das cidades tem um tratamento mais efetivo, como requeira cada caso. Eu tive a feliz sorte de viver naquela região, e de ter sobrevivido aos ataques daquela insidiosa moléstia, e de haver usufruído o privilégio de estar, hoje, aqui, podendo contar esta estória com final feliz, ao contrário de tantos outros desafortunados.
Parte curiosa de minha trajetória, foram as ‘diversões’ que alegraram minha adolescência. Eu era um garoto que tinha o privilégio de usufruir variadas ‘diversões’. Vivia para estudar e, nas horas vagas, das lidas já mencionadas, eu procurava dar-me um pouco de lazer. Afinal, a gente ainda na adolescência, tinha uma visão da vida mais precoce, pelo trabalho. E assim, muito cedo chegavam os anseios pelo desfrute da vida.
‘O Aprendizado da Natação’ – Quando cheguei a Conceição do Araguaia, eu ainda não sabia nadar, não obstante as várias tentativas que fiz, ainda lá, no Uruçuí – engolindo ‘piabinhas’ vivas, etc.
Foi, somente, quando já morava em Conceição do Araguaia, e naquele Rio Araguaia, que consegui realizar aquele meu intento. E olhe que era um Rio muito perigoso, até mesmo para quem já sabia nadar. E, por ironia do Destino, foi ali que me tornei um ‘peixinho’: Aprendi a nadar, e fazia misérias naquele Rio, com a minha canoinha, e outras peraltices mais naquele mar d’água.
O Rio Araguaia, onde aprendi a nadar, era o grande divertimento da meninada. A cidade de Conceição do Araguaia, muito quente, a gente tinha, até por necessidade, que se banhar várias vezes ao dia. A gente nadava sempre, não se falava em natação, mas era um exercício muito sadio. Vivia sempre de calção, preparado para o banho. Banhava-me, nem tirava o calção para secar. Enxugava no próprio corpo.
A gente ficava, quase sempre, o dia inteiro, só de calção, pronto para um mergulho. Nos finais de semana, é que a gente ficava mais arrumadinho, uma roupa melhorzinha. Calça comprida, pronto para alguma matinê dançante. Era dia de folga de minhas outras atividades.
‘Andar de canoa’ – Era uma brincadeira de que eu gostava muito. Papai comprou-a, e me deu como instrumento de trabalho, como já demonstrado. Mas eu a tinha, também, para outra atividade: o divertimento. Eu ia tomar banho no meio do rio. Já havia aprendido a nadar. E nadava até relativamente bem, o suficiente para não temer as profundezas do grande, largo, majestoso Rio Araguaia. Eu pegava meu remo, entrava na minha modesta embarcação, e me dirigia para o meio do rio. No período das cheias, ele atingia, de frente, a nossa cidade, uma largura de uns 3 km. E lá no meio do Rio, eu largava o remo n’agua, emborcava (virava) a canoa, que ficava de fundo para cima. Eu mergulhava por baixo dela e voltava à superfície d’água, já dentro da canoa virada. Tinha a canoa como cobertura. Dentro daquele espaço com vácuo, sem água, eu segurava nas laterais da canoa, erguia a cabeça até o nariz ficar naquele vácuo dentro da canoa virada, e descia rio abaixo, por bastante tempo, nadando em pé, debaixo dela, e descia o Rio por uma longa distância. Depois, eu a desemborcava e, nadando, buscava e pegava meu remo, de novo. A seguir, tirava a água da canoa, balançando-a de um lado para o outro, até diminuir a água que estava dentro. Daí, eu entrava no meu transporte e, com o remo, eu terminava esgotando toda a água de dentro dela. Após, retomava a navegação, mas já em direção à margem do nosso lado, para a cidade. Isso eu repetia, não com muita frequência, mas sempre que voltava a vontade de praticar aquele esporte.
‘Finca’ – Eu também brincava de ‘finca’, pequena peça de arame duro, resistente, pontiaguda e, com uma pequena dobra na parte superior. Para fazê-la, pegava-se um ferro de uns 20 cm, mais ou menos, dobrado num dos lados, com pelo menos três dedos, para apoio do polegar e do dedo indicador. Fazia-se um triângulo na areia, e arrumava-se um parceiro. Jogava-se aquela peça na areia ou terreno mole, onde a ‘finca’ se fixava. Cada jogador partia de um vértice. Em seguida, fixava-se essa ‘finca’ no outro ponto, e o parceiro, também. Acontece que o objetivo da brincadeira era o parceiro bloquear a passagem para o outro. Ou seja, não permitir que o seu rival continuasse riscando, pois a sua saída estava bloqueada. Quando um deles conseguia esse gloqueio, era o vencedor da partida.
‘Aro de Arame’ – A roda de arame era outro divertimento muito engraçado. Só que não se tinha competidor. Pegava-se um arame resistente, fazia-se um círculo, roda de uns 30 cm de diâmetro, mais ou menos, e, com uma pequena haste de arame, com um gancho na extremidade inferior, era em forma de ‘n’, e tinha-se que manter aquela roda em pé, fazê-la girar, e com aquela haste, tínhamos que mantê-la girando, e com até certa velocidade, conduzida e equilibrada com aquela haste. E tinha hora que tínhamos que andar com uma velocidade acelerada e, não raras vezes, até correndo. O mais importante era a gente sair pela cidade, girando aquela roda de arame, desvencilhando-se dos obstáculos. Era esse o desafio: Ela, a roda, não podia cair. O que, fatalmente, acontecia, se andássemos muito devagar, ou se encontrasse um obstáculo incontornável. E quanto mais tempo a gente ficava com aquele brinquedo em movimento, maior era o sinal da grande habilidade no equilíbrio. E olha que a gente passava por certos obstáculos, e não podia deixar aquela roda cai. Ela podia até pular os buracos ou pequenos desníveis, mas a gente tinha que, logo em seguida, colocar o instrumento condutor, a haste em que a gente equilibrava aquela roda.
‘O Pião’ – Era um brinquedo muito utilizado pela meninada. Havia disputa entre dupla de jogadores. Mas nunca fui muito bom nesse tipo de brincadeira.
‘Jogo das Castanhas’ – Na época da safra do caju, guardavam-se as castanhas, e procurava-se um companheiro para jogar com uma bola de gude (de vidro e, para nós, de lá, as ‘petecas’). E com aquelas ‘petecas’, fazia-se o jogo. Jogava-se uma na outra. Quem mais acertasse no parceiro, ia ganhando castanhas.
Depois de certo tempo no jogo, às vezes até dias, juntavam-se as castanhas ganhas, e ia-se ‘queimar’, ou melhor, usá-las numa folha de ‘flandre’ (hoje, folha de ‘zinco’) de uma lata de 20 litros verticalmente cortada.
‘Queima de Castanhas’ – Não só as ganhas nesses jogos, mas também as outras, extraídas dos cajus consumidos em casa. Depois de juntar uma certa quantidade, queimava-se ou assava-se, que é a mesma coisa. E aí, deliciava-se com aquela fartura de castanhas assadas. Assim, eram consumidas, de imediato, com os companheiros, ou mesmo em casa.
(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 – E-mail liciniobarbo[email protected])