Opinião

Capoeiras evocam mestre Bimba

Diário da Manhã

Publicado em 23 de novembro de 2015 às 23:18 | Atualizado há 4 meses

Se ainda estivesse neste plano terreno, o famoso Mestre Bimba, criador da Capoeira Regional, teria completado neste 23 de novembro do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, 116 anos de idade. Passados 41 anos de seu falecimento, ocorrido em Goiânia no dia 5 de fevereiro de 1974, seu nome está ainda presente na rodas de capoeira e sua imagem inesquecível será sempre evocada como um mito na história do folclore brasileiro. Criador da Capoeira Regional baiana, Mestre Bimba foi o primeiro mestre-capoeira a ter autorização legal para a prática desse esporte ao qual dedicou sua vida, vindo a falecer em Goiás depois de mais de meio século de magistério da capoeira que, com ele, ganhou status e fama mundial. Em carta-resposta à folclorista goiana Regina Lacerda que solicitara em seu favor ajuda à Campanha Nacional de Defesa do Folclore, Renato de Almeida escreveu com pesar: “Como você bem diz, era Mestre Bimba um patrimônio folclórico e, mercê disso, a nós caberia oferecer-lhe atenção e carinho.” Como reconhecimento de seus méritos, ainda que tardiamente, a Universidade Federal da Bahia outorgou-lhe, post-mortem, o título de “doutor honoris causa” em 12-6-1992.

Bimba, desde menino, era seu nome de guerra, como se diz entre os capoeiristas, mas como diria João Cabral de Melo Neto, tinha outro “nome de pia”: Manoel dos Reis Machado. Sua mãe, Dona Maria Martinha do Bonfim, fizera uma aposta com a parteira que ao ver nascer o menino, exclamou: – “Veja a bimbinha dele! – É homem, paga minha promessa!” O apelido pegou. Bimba cresceu, viveu e multiplicou-se com o nomezinho que se transformou num mito no mundo da Capoeira. Tivessem colocado uma peça de ouro na primeira água em que o banharam, teria ficado rico. Tivessem enterrado seu umbigo à porteira do curral, segundo a crença, teria virado fazendeiro. Mas nada disso aconteceu: viveu e morreu pobre e só possuía “as graças de Xangô”. Era feliz, espirituoso e vivia livre de perseguição, pois era consagrado a São Salomão – “defendor da Capoeira” – como dizia ele.

Batendo a mão no peito, gracejava: – “Quem botou essa peça, não criou a gente passando a mão pela cabeça quem nem menino de vovó.”  Seu pai era campeão de Batuque, respeitado na redondeza do Engenho Velho, freguesia de Brotas, onde se distinguia pelas muitas vitórias de “bamba”. Trabalhava como “magarefo” (matador de boi) no Matadouro do Retiro em Salvador. Seus filhos tinham que aprender a “zorra” (coisa retada). – “Meninos precisavam saber coisa de homem, pois naquele tempo não era mole não” – contava Mestre Bimba. E advertia: “Isso não é bolodoro”, ou seja, conversa fiada. O que se falava, podia se escrever.

Bimba não teve rodas de infância e, desde pequeno, acompanhava seu Luis Cândido Machado aos terreiros de Batuque e, vendo as proezas do pai, emocionava-se, tinha vontade de ser também batuqueiro. Aprendeu logo a tocar viola, cantar, iniciando-se na prática dessa luta e dança primitiva de origem africana, que mais tarde aproveitaria na concepção da Capoeira Regional. Com 12 anos de idade “jogava perfeitamente que nem os grandes”. Daí para frente foi aprender Capoeira Angola com Mestre Bentinho, ex-capitão da Companhia de Navegação Baiana. Mas aprendia-se a jogar na bruta e a troco de pancadas, num sistema de “rondes” que se formavam nos largos e à sombra de grandes árvores num ritmo bravio ao som do berimbau. Bimba recordava um formidável golpe de Mestre Bentinho, que lhe acertou de cheio na cabeça, ficando desacordado até o dia seguinte. Mas persistiu. Aos 18 anos, tinha já experiência suficiente para dedicar-se ao aperfeiçoamento e sistematização do “jogo de capoeira” que viria a chamar-se Capoeira Regional Baiana.

 

Da Capoeira Regional

Aproveitando golpes extraídos do Batuque e da primitiva Capoeira Angola, que praticou por alguns anos, Mestre Bimba foi, aos poucos, elaborando sua nova modalidade de capoeira, cuja ampliação atingiria um total de 120 golpes. A Capoeira Regional, segundo explicava, difere-se da Angola principalmente pelo estilo dos golpes altos (de perna), golpes ligados ou “cinturados” e pelos balões que lhe são característicos. Os demais golpes são semelhantes nas duas modalidades, pois – como explicava Valdeloir Rego – “a capoeira é uma só, com ginga e determinado número de golpes e toques, que servem de padrão a todos os capoeiras enriquecidos com criações novas e variações sutis sobre os elementos matrizes, mas que não descaracterizam e interferem na sua integridade”.

Na Capoeira Regional, a “meia-lua-de-frente” corresponde à “meia-lua-fechada” da Angola. O golpe atual “meia-lua-de-compasso” é idêntico ao “rabo de arraia”, sendo alto na Regional e baixo na Angola. A “armada” da Capoeira Regional é a “meia-lua-aberta” da Angola, havendo ainda um golpe chamado “dedo-no-olho”, segundo explicava Mestre Bimba, que se aplicava mediante uma ginga, com as pernas meio trançadas e em atitude mais baixa do que se verifica nessa nova modalidade. Continuavam sem sofrer modificações (pelo menos ao tempo de Mestre Bimba) alguns golpes tais como “joelhada”, “cabeçada” e a “rasteira” que pode ser aplicada alta ou baixa, ou seja, ficando o capoeirista de pé ou em posição específica. Na Regional os murros, que foram introduzidos por Mestre Bimba, tomaram a denominação de, “galopante” (murro aplicado com a mão aberta na região do ouvido) e “godeme” (murro lateral com as costas da mão). Outras características podem ser ressaltadas, mas requerem conhecimento de nível técnico, que não vem ao caso explicar aqui. (Ver a propósito, “Na roda do berimbau”, de Emílio Vieira, Goiânia: Editora Oriente, 1973, p. 44/60).

 

Do método

Uma das contribuições inegáveis de Mestre Bimba foi a sistematização de um método para o ensino de capoeira, que formou escola e chegou a atravessar fronteiras através de seus agentes transmissores, centenas de seus ex-alunos espalhados pelo Brasil e até no exterior. Os principais quesitos para quem se inicia na prática da capoeira, segundo seu método, são os seguintes: aprender o gingado, que é o ponto de partida; aprender a sequência de golpes de defesa e ataque; aprender a sequência de ritmo, puxado ao berimbau, quando o aluno é inciado a “jogar solto”. Na fase preparatória, e durante o curso, submete-se o aluno a uma contínua ginástica de preparação física a fim de adquirir resistência e para relaxar os tendões musculares, alcançando a necessária flexibilidade de articulação.

Cerca de 52 golpes são fundamentais na Capoeira Regional, distribuídos por etapa no curso que corresponde a 4 graus distintos, por uma ordem de “lenços”, assim conferidos, segundo a escala: 1. “lenço azul” (grau de luta); 2. “lenço vermelho” (de especialização); 3. “lenço amarelo” (defesa de armas); 4. “lenço branco” (de mestre-capoeira). O lenço branco simboliza o “lenço de esguião de seda” do capoeirista primitivo, que o usava no pescoço a fim de proteger-se contra corte de navalha. Para se obter o primeiro lenço (azul) acompanhado de uma medalha com inscrição da academia, o capoeirista deverá, em solenidade especial, demonstrar diante do “mestre”, com perfeição técnica, todos os golpes aprendidos na primeira fase, passando à exibição de “balões” e golpes ligados ou “cinturados”, após o que apresentará um “jogo floreado” ao toque do berimbau e com surpreendentes efeitos coreográficos. A essa altura o capoeirista está apto a receber da “madrinha” o lenço e a medalha a que fez jus.

Só depois de obter consecutivamente, outros lenços (graus) “vermelho” e “amarelo”, o capoeirista poderá chegar a ser “lenço branco” ou mestre-capoeira. Essa gradação foi instituída por Mestre Bimba naturalmente para nivelar a capoeira a outros tipos de esporte sob esse sistema de classificação. A última especialização que costumava oferecer era o curso de “emboscada”, geralmente feito dentro do mato, numa espécie de guerrilha que rememora as lutas dos negros em fuga, ou melhor, em reação à perseguição dos “capitães-de-mato” que procuravam capturá-los para trazê-los na marra aos engenhos, onde eram submetidos a trabalhos forçados.

Mestre Bimba zelava da capoeira como um patrimônio moral, pois era seu instrumento de auto-realização, e só oferecia o título de “lenço branco” ao candidato que, além da especialização técnica, apresentasse reconhecida idoneidade, pois considerava que a prática de capoeira devia estar sempre associada aos objetivos educacionais. Mas, como dizíamos, o segundo estágio da Regional é o do aprendizado da defesa de armas. Bimba contava de como se submeteu às primeiras experiências para conseguir representar o ataque e a defesa, consigo mesmo, sem ter que correr o risco de ferir algum aluno. Utilizava o objeto de ataque (faca ou facão, chamados “armas brancas”) pressionando-o por uma liga atada a uma corda, de forma que, puxada essa corda, produzia-se o impulso da arma em sua direção, provocando movimentos rapidíssimos de desvio de corpo e de rebate do instrumento, do contrário o ferimento seria fatal.

Era inegável o seu cuidado em ensinar capoeira – para uma geração moderna – a quem queria evitar os transtornos que ele mesmo sofrera quando de sua aprendizagem, nos duros tempos em que o lema era: “A coisa com sangue entra.” Bimba cultivava a capoeira com amor, como esporte, arte e diversão, nunca como instrumento de violência, daí a estima que merecia de seus alunos, motivados também pela sua grande simpatia humana. O Mestre mencionava com orgulho os nomes de pessoas importantes que tinham sido seus alunos – isso para dizer que a capoeira, na sua mão, deixara de ser uma simples luta de rua para constituir-se em arte de expressão corporal apreciada nos palcos teatrais, nos palácios e nos mais altos setores onde a elite estava presente – o que representava, para ele, sem duvida uma forma de compensação à sua humildade.

Aceitação social

À proporção que a Capoeira Regional ia-se difundindo por todo o Brasil, crescia o nome de seu sistematizador, que foi o primeiro mestre-capoeira a se estabelecer profissionalmente, mediante autorização oficial obtida em 1937, para abrir uma academia de capoeira, que funcionou por mais de um quarto de século no Nordeste de Amaralina em Salvador. “E foi quem afirmou a capoeira na Bahia – escreve o jornalista Jair Moura – divulgando-a e ensinado-a a diversas personalidades da vida política e social. Conseguiu assim, Mestre Bimba, com sua Regional, uma vitória esplêndida, quando sabemos que até pouco tempo capoeirista era considerado sinônimo de desordeiro, de elemento desclassificado.”

Em 23 de junho de 1953, Mestre Bimba realizou uma exibição no Palácio da Aclamação, no Rio de Janeiro, para o então presidente Getúlio Vargas, que, apertando-lhe a mão, disse reconhecer que a capoeira não só representava uma legítima contribuição à educação física, mas que “deveria, pela sua origem, ser considerada a luta nacional brasileira”. Essa frase abriu caminhos para Mestre Bimba no sentido do reconhecimento à sua outrora perseguida capoeira, bem como de sua ascenção social. Foi ele “o primeiro capoeirista – afirma Valdeloir Rego – na história turbulenta da capoeira, em todo o Brasil a entrar em palácio governamental e se exibir, com seus alunos, para um governador” (referia-se ao ex-governador da Bahia, Juraci Magalhães, que convidara Mestre Bimba para uma exibição em palácio para um grupo de turistas e convidados seus.

A história da capoeira no Brasil está indubitavelmente ligada à figura de Mestre Bimba, que lhe conferiu dignidade, retirando-a da decadência, quando marginalizada nas ruas, dando-lhe os necessários retoques para atingir o público elitizado. Mas não foi sem dificuldades que Mestre Bimba conseguiu dar status à capoeira: contava ele que em 1918, quando começou a sua campanha de divulgação dessa luta, costumava ensinar de graça e era preciso fazer coleta entre os amigos para reunir 10 vinténs a fim de pagar a polícia para poder “tocar berimbau uma hora de relógio”. Terminado o tempo, estava proibido de “mexer de novo no instrumento”. Felizmente que seu grande sonho fora, ao menos em parte realizado, ao ver a Capoeira ensinada como educação física nos quartéis e nas escolas, e elevada ao nível artístico de expressão corporal já com projeção no cinema e no teatro.

(Este artigo, revisado pelo autor, foi publicado originalmente no jornal O Popular, sob editoria de Miguel Jorge, em Goiânia, 22 de agosto de 1976, Dia Nacional do Folclore).

 

(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa – E-mail: [email protected])

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