Casa Fora de Casa
Diário da Manhã
Publicado em 27 de outubro de 2016 às 00:35 | Atualizado há 9 anosEm vários lugares de Goiânia, percebe-se um movimento de ocupação de espaços públicos com a finalidade de torná-los socialmente aproveitados. Percebo isso especialmente no Setor Sul, onde moro. Em geral, são pessoas jovens, que organizam diferentes formas de convivência nas praças, com jogos, apresentações culturais, grafites, pinturas de muros etc. Verificam-se ações de cuidado. O movimento tem até um nome: Casa Fora de Casa.
Goiânia é uma cidade com encantos. Fiquei admirado com esta capital no Cerrado quando vim morar aqui há 16 anos. Trazia comigo experiências de viver por dez anos no Rio de Janeiro. As feições modernistas da cidade logo me chamaram a atenção. O projeto urbanístico com grande quantidade de parques, jardins e ruas com ajardinamento impressionaram quem chegava. Na concepção de origem, a cidade foi pensada para ter fluxo, com avenidas mais largas e muitas rotatórias, uma tendência em muitas cidades bonitas mundo afora.
As muitas intervenções ao longo dos anos alteraram significativamente esse quadro da capital goiana. O crescimento demográfico, claro, pressionou muitas alterações. Os espaços ficaram mais densos, com muitas edificações novas, mais e mais carros nas ruas. Fez-se muitas experiências com os sentidos de tráfego em muitas ruas. Algumas desastrosas, pois impõem direções retilíneas, sem possibilidades de retornos nem de contornos, como seria desejável para quem se locomove na cidade. Hoje, Goiânia apresenta os problemas urbanos de qualquer grande cidade. E isso exige intervenções e soluções inteligentes, compatíveis com a modernidade pretendida, para se viver numa grande cidade com boa qualidade de vida.
Há outras coisas que lamento terem se perdido ao longo dos anos. Goiânia não tem mais a beleza de suas praças ajardinadas. A terceirização dos serviços de jardinagem e poda das árvores impõe posturas estúpidas. Árvores são literalmente depredadas pelos agentes públicos. O recolhimento de dejetos nas praças é feito por máquinas enormes que deixam verdadeiras crateras após sucessivas passagens. Outro dia observei um tratorista cortando a grama. A impressão que ficou é que estava lavrando a área, como se faz em fazendas no preparo para o plantio. O resultado foi similar: um rastro de destruição. Por sorte, a natureza se recompõe, mas enquanto isso falta um tratamento urbanístico adequado que encanta quem chega em cidades bem-tratadas.
Não se consegue avançar muito em termos de urbanidade, civilidade e cuidado com o espaço público sem a participação das pessoas. Em nossa casa, há muitos anos, participamos ativamente no recolhimento de materiais recicláveis que usualmente são descartados no lixo comum. Procuramos dar o destino adequado aos materiais, inclusive realizando a compostagem de resíduos orgânicos. Em nossa viela, várias casas foram aderindo à prática de entrega de materiais recicláveis ao caminhão da coleta seletiva, que passava com regularidade sabida. Hoje sua passagem é totalmente incerta.
Outro dia, havia colocado vários sacos de materiais no lugar e no horário informado. Para minha decepção, o caminhão não veio, e os materiais foram recolhidos pelo caminhão do lixo comum. O trabalho pedagógico de aderir à adequada destinação das montanhas de lixo que se produz numa cidade precisa de muito mais tempo e vontade depois de experiências desagradáveis como a que relatei. De minha parte, vou perseverar na mesma prática ecologicamente correta. Mas me preocupo com as pessoas que não têm a mesma disposição e hábito.
Acabei falando de práticas afeitas ao poder público municipal. Uma boa gestão – descentralizada, moderna e em diálogo com a população – é importante para Goiânia voltar a ser a bela cidade que era. Cobrar as obrigações do poder público é fundamental no exercício dos direitos do cidadão. Mas tem algo mais: urbanidade e civilidade dependem do cidadão. Apesar deste alvissareiro movimento de pessoas que buscam recuperar espaços públicos, dando-lhes tratamento e cuidado, verifica-se um descuido crônico com a coisa pública, que deve estar inscrito no nosso código cultural brasileiro.
É impressionante o desleixo com que as pessoas jogam lixo em toda parte. Coisas pequenas e outras grandes, como restos de obras. Isso acontece com a permissividade do poder público; com a visível ausência dos órgãos de vigilância; com a falta de atendimento a chamadas dos cidadãos. As pessoas vão se acostumando com o fato de que nos espaços públicos tudo se pode fazer. Para ter uma cidade moderna, bonita, limpa, muitas coisas dependem do poder público. Mas é preciso uma adesão quântica por parte dos cidadãos a novas formas de lidar com coisa pública, a começar pela destinação do lixo; pela melhoria das calçadas; pelo cuidado com as plantas, hortas urbanas e árvores. Isso faz brotar a alegria nas pessoas. É preciso tomar consciência de que qualidade de vida na cidade depende da ação de um coletivo de atores.
Sou otimista. Quero apostar que o movimento Casa Fora de Casa vai ganhar em densidade; que cada vez mais pessoas vão aderir a essa postura de tratar o espaço público com cuidado. Vou fazendo a minha parte. Adotamos para o cuidado uma parte de uma praça no Setor Sul. Uma pequena floresta vai se constituindo com o plantio de árvores, especialmente com mudas de ipê branco, mas também de várias frutíferas. O lixo lançado é recolhido. Até a grama cortamos. Pássaros se fartam com frutas, no regozijo do seu canto. As flores alegram os olhos. A presença de sapos mostra que o ambiente se torna mais saudável. Casa Fora de Casa é um movimento de vanguarda! Proponho a adesão!
(Haroldo Reimer, professor e reitor da Universidade Estadual de Goiás. Email: [email protected])