E sou aquele que ri de todos
Redação
Publicado em 28 de julho de 2015 às 22:21 | Atualizado há 10 anosQuando a gente era criança, e morávamos na Travessa João Ayres, onde ora é o Laboratório Clínico Evangélico, lá pelos idos de mil novecentos e muitos, dona Neném mandou o Moacir e eu à casa da lavadeira que morava na Vila Corumbá, naquele tempo chamado de “Coreia” devido ao estado de precariedade em que ficara a Coreia depois que se meteu na guerra e ficou reduzida a farelo.
Descendo a travessa João Ayres começava a Rua 1º de Maio em frente ao local onde hoje é o Hospital Sta. Paula, dali seguíamos rumo ao que agora é a Praça das Mães. Aquele local se não era fim de mundo era começo, tantos os barracos, casas, casonas e casinhas. Em frente à casa onde fora do Anapolino e dona Dulce e a do pai da Netinha Sidney havia uma cratera imensa, do tamanho de um campo de futebol e muito funda.
Os “inteligentes” limpadores de arroz – que na época eram muitos, tanto, que a cidade era chamada Capital do Arroz – despejavam as cascas desse cereal dentro da cratera até ao limite máximo do buracão nivelando as cinzas às beiradas de chão estreito que sobravam em favor do trânsito de gente e animais. Alguns bêbados caíam naquela vala onde crepitavam palhas de arroz e eram tidos como retirantes, mas era pó na imensidão de pó. Cavalos que pisavam no falso chão afundavam, instantaneamente, e chegando ao fundo do terrível “crematório” já eram apenas cinzas.
Eu sempre fui lento devido a pouca visão, andava vagaroso por conta disso mesmo e o maninho Moacir, lépido, rápido, bom de vista, tinha essas vantagens sobre mim. Ia sempre à frente porque – já o disse – sempre fui tardo.
De repente, da janela de uma casa (hoje Anápolis Auto Peças, do Luiz) duas mulheres – não gritavam mais alto que poderiam despertar os dinossauros que outrora viveram por ali. Mas elas tentavam nos alertar, a todo pulmão:
– Não pisem nas cinzas!
– Isso é uma cratera! Já morreu muita gente e animais por aí!
A camada de cinza era branquinha como leite, toda ondulada, penteada pela brisa formando pequenas, porém, variadas dunas que encantavam os olhos das crianças.
O Moacir e eu não nos atentávamos para a gritaria das senhoras, até que uma delas, em desespero, alardeou mais forte.
– Não pise aí!
Olhei rápido para frente, o Moacir, sem eu ver, já tinha pisado na falsa solidez branca e se afundara. Só vi metade do bracinho dele para fora, foi quando o segurei com firmeza e o arremessei para cima, salvando sua vida.
O maninho gritava, chorava, com as perninhas, barriga e peito queimadas. Mais do que urgente coloquei-o no ombro e, com minhas pernas curtas, todo esforço encetava para correr o mais depressa possível para casa com o mano chorando muito e eu querendo vencer o percurso com a velocidade de uma lebre, mas não passava de uma tartaruga carregando outra. Minha preocupação era total e absoluta. Não sei onde eu conseguia força para correr com o Moacir nas costas. Colocar ele no chão nem pensar, seus pés, pernas e quadril doíam devido às queimaduras. De cada porta, janela, ou vendas, pessoas gritando:
– Passa isso, que é bom…
– Cobre ele com folhas de mamonas!
Palpites não faltavam. Todos sabiam onde morávamos. Contudo, nenhum adulto foi me ajudar, nem homem nem mulher. Eu correndo e morrendo de preocupação. Ô, gente sem solidariedade! Sem sentimento. Marmanjos conversando nas portas de botecos e nem um que fosse homem pra ajudar a socorrer meu irmãozinho, gente egoísta, preguiçosa. Ou burra demais que não prestava socorro, sequer, a duas crianças em dificuldades. Pessoas invejosas, incultas, incapazes ao menos de socorrer alguém em uma emergência.
Finalmente cheguei em casa, botei o Moacir no sofá e caí deitado na passadeira da sala, enquanto minha mãe, vizinhas e parentes ultimavam socorros, tendo dona Neném enviado o Osair, nosso irmão maior, à loja do nosso pai, comunicar-lhe o fato.
Uma semana depois o Moacir ainda estava de cama, se curando das queimaduras. Jamais me esqueci desse apuro.
Depois que os tempos rolaram e éramos então jovens adultos, escutei versões cruéis sobre mim, inventadas não sei se por parentes, irmãos, por aquela gente interiorana que, jamais me conhecendo, sempre na retaguarda, diziam que fora eu que jogara meu irmão na cratera de fogo, quando fui eu que o salvei, sem estar consciente de que aquele tapete macio de cinza era um falso piso constituído de finíssimo pó: lindo por cima, mas fogo oculto por baixo. Não sabem que se acaso ele tivesse se afundado eu teria mergulhado no abismo para salvá-lo. Afinal era meu irmão. Mesmo que não fosse.
Esqueçamos tão infeliz incidente! Povo ocioso. Ouvi falar de mim apenas atitudes ruins, inacreditáveis. Atento a tudo e a todos com o intuito só de ajudar, como se eu fosse uma sentinela com o dever de socorrer, servir e orientar. Percebendo que ninguém nos vê como realmente somos, esqueci-me de prestar atenção no que diziam os levianos, seguindo minha rota, preocupado somente com a minha consciência e sem prestar atenção no que pensavam ou falavam de mim.
Por isso…
Ninguém me ilude com elogio.
Não vou à casa de quem quer que seja sem um motivo nobre.
Acostumei-me com a indiferença alheia. E sou aquele que ri de todos.
(Iron Junqueira, jornalista)