Leo Lynce e a revolução da quinta
Diário da Manhã
Publicado em 23 de novembro de 2017 às 23:58 | Atualizado há 7 anos
Algumas vezes a história lembra uma dama doce e atraente. Outras vezes ela lembra uma dama amarga e repulsiva. A história foi com o poeta goiano Leo Lynce (Cyllenêo), avô deste articulista, uma dama repulsiva e amarga em um caso específico do passado goiano: a Revolução de Maio de 1909.
Tal perturbação da ordem pública ficou vulgarizada pelo apelido de “Revolução da Quinta”.
Sentindo-se Leopoldo de Bulhões traído e usurpado politicamente pelo seu antigo protegido e discípulo, José Xavier de Almeida, ex-presidente deste Estado, líder inconteste então da situação, ora não raro sucede ao aprendiz superar o mestre, e abandonar ainda o mestre, entrou o eminente financista a arquitetar um meio de expulsar Xavier da cena política de Goiás e restaurar a antiga liderança. Disse ‘cena política’ porque nada se parece mais com a política do que uma encenação teatral.
“O sr. Bulhões era ministro.”, lê-se em matéria do Correio da Manhã, Rio de Janeiro, edição de 15 de março de 1909, número 2.799. “Ministro e apeado do poder em seu Estado!”. O registro alude ao primeiro período de Bulhões frente ao Ministério da Fazenda, 1902 a 1906; ao passo que a presidência do Estado era então exercida por Xavier de Almeida.
O meio encontrado por Bulhões e aliados e agregados fora arregimentar homens e adquirir armas para um plano revolucionário. Sim, caros leitores do Diário da Manhã, armas e homens para uma revolução! Cujo objetivo seria a quebra da situação ou ordem regional.
Bulhões “conseguiu a aquisição de armas através de seu amigo e compadre, Visconde de Moraes.”, segundo se lê em História de uma oligarquia: os Bulhões da historiadora Maria Augusta Sant’anna Moraes, Goiânia, Goiás, Editora Oriente, 1974, página 201. Obra que recomendamos aos amantes da história.
A empreitada não seria pois fácil não de ser executada. Afinal, o atual líder e ex-aprendiz do grande financista goiano estava solidamente incrustado no poder local e todos os presidentes do Estado, a contar do período Miguel da Rocha Lima (1905 – 1909), iam certamente estar alinhados ou subordinados ao firme mando político de Xavier de Almeida, se a liderança deste não tivesse sido deposta pelo golpe. Ora fora realmente um golpe.
A gente quer dizer que iam todos os chefes do executivo, sucessivamente, soletrar pela cartilha xavierista, se não tivesse sucedido o golpe revolucionário de 1909. Até quando a gente não sabe.
Por sinal que o presidente José Xavier de Almeida (1901 – 1905) cumprira, notadamente no setor da educação e cultura, uma gestão notável na época em que ocupara o Palácio Conde dos Arcos, sede então do governo regional. Concedamos a palavra ao historiador Zoroastro Artiaga: “fez Xavier de Almeida uma administração desapaixonada, evoluída, fecunda, honesta, proficiente e renovadora”. As seguintes realizações marcaram a sua administração: “merece especial registro o da instalação, a 24 de fevereiro de 1903, da Academia de Direito e Escola Normal (hoje instituto de Educação), solenidade realizada com a presença de todas as autoridades e todos os intelectuais vilaboenses.” É o que se sabe lendo a página 83 de Presidentes e Governadores de Goiás de Joaquim Carvalho Ferreira, Goiânia, Editora da UFG, 1980.
Como intelectual, jornalista, depois professor do curso jurídico, Leo Lynce só podia se juntar politicamente, naquele princípio do século XX, a um governo que priorizasse a educação e a cultura. Ordem natural das coisas.
Nem restavam dúvidas de que Bulhões era Bulhões. Um homem culto, inteligente, enérgico e determinado, a confrontar outro homem igualmente determinado, enérgico, inteligente e culto, Xavier de Almeida.
Já vi esse filme em alguma parte. Algo em torno daquela situação em que dois bicudos nunca se beijam.
Ocorre ter Leo Lynce conquistado uma cadeira de deputado estadual pelo partido xavierista, parece-nos que através do Partido Republicano. 1908. Em quase tudo copiávamos fielmente a grande república da Norte América, eis que, além do Republicano, tínhamos cá o Partido Democrata, liderado por Bulhões.
O legislativo regional era chamado naquela primeira república de “Congresso Goiano” e nele atuavam duas casas: o “Senado Estadual” e “Câmara dos Deputados Estadual”. Só para exemplificar, o bisavô deste articulista, Manoel dos Reis Gonçalves, foi, durante várias legislaturas, senador estadual.
Vale citar um registro na página 2 de O Paiz, Rio de Janeiro, número 8973, a 29 de abril de 1909, que publica uma carta “do deputado Eduardo Socrates:” (…) “Sem tomar muito espaço, mencionarei os nomes dos deputados estadoaes eleitos e diplomados, que estão firmes ao lado do governo, circumstancia que corrobora a minha affirmativa de que não coube à opposição a victoria nesse pleito: Luiz Guedes, Olegario Delphino, André Xavier, Adolpho Siqueira, Possidonio Rabello, Cylleneu de Araujo…”
Muito raros aqueles que grafam corretamente o ortônimo do poeta goiano. O presente articulista já leu variantes como, Cirineu, Cirinêo, Celineu, Cenileu e outros. Aí encima O Paiz grafa “Cylleneu.” Não de todo errado. O seu prenome correto é “Cyllenêo”, de onde o escritor retirou o anagrama “Leo Lynce”, atentem que o ortônimo e o pseudônimo dele tem as mesmas letras em comum.
Pondo de lado essa particularidade, cumpre voltar à revolta, sublevação, perturbação, seja lá qual nome se queira dar às agitações daquele princípio de século.
Maria Augusta Sant’anna deixa o leitor sabendo que tão logo Leopoldo de Bulhões fundara, no Estado, o Partido Democrata, reunindo velhos e novos políticos, seguiu para o Rio de Janeiro “e iniciou os conchavos para a realização do plano revolucionário, aqui articulado com a cúpula do novo partido político, a executar-se caso se registrasse a vitória do grupo xavierista.”
Ao mesmo tempo em que os líderes revolucionários “arregimentavam homens dispostos a lutar e que deveriam agrupar-se na fazenda da Quinta, de propriedade do coronel reformado Eugênio Rodrigues Jardim”, registra Maria Augusta Sant’anna Moraes “Homem refratário à política, aderira ao movimento para atender ao irmão, Francisco Leopoldo, cunhado de Leopoldo de Bulhões.”
“Quem viveu na velha Capital de Goiás os dias de abril e maio de 1909, jamais poderá esquecer o ambiente febril da velha Vila Boa”, escreve Sebastião Fleury nas suas Memórias Históricas. “Não se conversava senão sobre boatos que incendiavam a cidade, compra de armas e reuniões suspeitas aqui e ali. E, para aumentar o mal estar o coronel Rocha Lima passou inopinadamente o governo ao vice, coronel Bertoldo de Souza”.
A gente só sabe que, vitorioso o movimento revolucionário encabeçado por Leopoldo de Bulhões, o xavierismo morreu. E com o xavierismo morreu também o mandato eletivo de Leo Lynce. Melhor: foi ferido de morte. Morto por aquele mecanismo espúrio chamado “depuração”, pelo qual se excluia um representante eleito.
É o que escrevem Francisco Itami Campos e Arédio Teixeira Duarte em seu livro O Legislativo em Goiás, 2016, página 54, sobre o perfil parlamentar dele: “eleito deputado estadual em 1908, foi depurado em maio de 1909”.
A depuração de votos constitui aquela situação maquiavélica que é o inverso da apuração de votos. Uma eleição com subtração de votos.
Ainda porque o deputado Cyllenêo de Araujo e demais eleitos da situação sequer podiam, barrados que estavam por uma força superior a mil e duzentos homens, ter acesso aos locais das reuniões do Congresso Goiano. É o que divulga a primeira página do Correio da Manhã, Rio de Janeiro, nº 2.858, a 13 de maio de 1909, que reproduz um telegrama expedido ao Dr. Xavier de Almeida.
“Em 1908, foi eleito deputado estadual. A revolução triunfante de 1909 sacudiu para fora do Estado vários goianos ilustres, tais como: Alves de Castro, Vicente de Abreu, Luiz Xavier de Almeida, Constâncio Gomes e outros”, registra o filho José Cruciano de Araujo em sua obra inédita, Leo Lynce, estrada fora… “Leo Lynce, envolvido também nos acontecimentos, transferiu-se para o Rio e do Rio para Uberaba, onde foi nomeado professor do Grupo Escolar”.
O seguinte soneto, em decassílabos, inspirado nesse contexto aí, escrito provavelmente na cidade de Bela Vista, reflete a emoção de quem, de volta ao berço, meses após os sucessos de 1909, revê saudoso a terra natal:
De volta
Volto a rever o campo sossegado,
o vale, a fonte e as ermas serranias
por onde andei cantando as alegrias
da flórea quadra azul do meu noivado.
Mas, como tudo agora está mudado
Já não há flores pelas cercanias.
Um gemido de dor nas asas frias
do vento acorda os ecos do passado…
Lá vejo a ponte… o laranjal… a casa…
E, entre as nuvens do pranto que extravasa,
distingo estranha gente à “nossa” porta.
Cheguei. Quis ver, ao lado da cancela,
a árvore em que gravei o nome dela,
mas a árvore também já era morta…
Não resta dúvida de que esse poema desperta na gente a sensação de uma quadra feliz e bela que o vento levou. As referências, ‘flórea quadra azul do meu noivado’, ‘a ponte’, ‘o laranjal’, ‘a casa’, ‘à “nossa” porta’, ‘a árvore em que gravei o nome dela’, são certamente evocações sentimentais de Clotilde da Motta Pedreira. L.L. casou-se com ela em 1907. Clotilde todavia faleceu no ano seguinte, a 19 de julho, aos 20 anos, em virtude de complicações do parto. Dessa breve união resultou a filha Clotildinha.
(Pedro Nolasco de Araujo, mestre em Gestão do Patrimônio Cultural, advogado, especialização em Direito Constitucional, sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, sócio-correspondente da Academia Belavistense de Letras, Artes e Ciências, diplomado pela Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra)