Opinião

Meus laudos psiquiátricos, sem que eu queira, podem ser usados para livrar criminosos da cadeia

Redação

Publicado em 26 de junho de 2015 às 00:14 | Atualizado há 10 anos

 

Aqui em Goiânia, uma dona de pamonharia, com inveja de uma boa cozinheira de uma pamonharia rival, sequestrou-a, atirou nela e a queimou viva, matando-a. Quando saiu esta notícia há alguns meses, a mídia não falou que a criminosa fazia tratamento psiquiátrico. Agora está-se dizendo que o fato dela ser “psiquiátrica” poderia atenuar a pena, ou livrá-la da pena. Pode até ser verdade, mas aproveito o tema para discutir alguns dados da minha prática médica cotidiana. Acontece muito. É o seguinte : atendo no hospital filantrópico de psiquiatria de adolescentes, muitíssimos casos de infratores, alguns com crimes bárbaros (estes dias mesmo estava hospitalizado um que estuprou, matou uma criança, meia-irmã, se não me engano, desprezando o corpo num monturo de lixo). Homicídio lá prá nós é mato, isso sem falar nas infinitas agressões, assaltos, latrocínios, tráfico, etc. Grande parte tem passado de hiperatividade, doença bipolar, oligofrenia, doença mental orgânica, não diagnosticadas/não tratadas por médico especialista (psiquiatra) durante a infância e que, por isto, viram “distúrbios de conduta” e depois “psicopatas” no futuro. As famílias, em 95% dos casos, não estão nem aí. Quase 100% dos casos não voltam nem para consultas, psicoterapias, exames e nem para pegar remédios de graça. Somem a família e o paciente. Depois de anos, chega para nós um “pai desesperado”, uma “mãe aos prantos”, alegando que querem um atestado “para livrar o filho da cadeia”, “ele está preso, doutor, matou um”. Quando não é a família, recebemos documentos oficiais, seja de juízes, promotores, advogados, defensores públicos, etc. Somos obrigados, sem ganhar nada por isto, a fazer os laudos. E veja bem que isto dá um trabalhão danado pois, como já se passaram anos, temos de levantar prontuários antiqüíssimos, temos de ouvir a família, estudar todo o caso de novo, as vezes examinar o paciente de novo, para emitir um laudo consistente. Diga-se de passagem que todos os artífices do procedimento jurídico-policial-social recebem (alguns até regiamente, como se sabe) pelo seu trabalho (juízes, promotores, delegados, psicólogos, assistentes sociais, defensores, advogados, etc). O médico não. Mas, tudo bem, médico no Brasil está, cada vez mais, tendo de virar relógio mesmo …(trabalhar de “graça”). Vamos em frente e fazemos o laudo. É aí que começam os problemas: se citarmos no laudo que a família “abandonou” o tratamento, já recebemos ameaças armadas de familiares, já recebemos ameaças  processuais, verbais, xingamentos, etc, porque, segundo os “defensores do criminoso” (parentes e técnicos), não poderíamos dizer que a “família abandonou ou não seguiu o tratamento porque quis”. Nós, como médicos, que estávamos oferecendo consultas de graça, psicoterapias de graça, internações de graça, remédios de graça, etc, só podemos interpretar como “abandono”, pois não vislumbramos outra causa. Ao nosso ver, se o paciente abandona o tratamento, se a família abandona, eles não trataram porque não quiseram, e isto não pode ser desconsiderado no tribunal. E geralmente o é.

Cansados de sermos cobrados “para provar que a família/paciente abandonou o tratamento”, passamos a fazer outro tipo de laudo: atestando apenas que o paciente esteve internado, com tal ou tal diagnóstico. Aí é que o criminoso vai para a rua mesmo, pois, com um “laudo psiquiátrico” na mão, geralmente o paciente é liberado (em nosso meio brasileiro não há, de modo geral,  hospitais psiquiátricos de segurança, não há seguimento sério em psiquiatria forense para estes casos, não há “oficiais de condicional”, seguimento, fiscalização estrita, para este tipo de coisa, não há serviços governamentais para isto, etc). O efeito “prático” de laudos psiquiátricos deste tipo tem sido: “É doente, não tem de ir para a cadeia.” Ora, não é isto que meus laudos querem dizer, pelo contrário. Há casos tão graves de doença mental, com tantos problemas familiares, tantos problemas de conduta, de caráter, com tanta falta de assistência, da família e do governo,  com tanta impossibilidade do quadro médico-hospitalar-judicial melhorar no Brasil, que o paciente, em grande parte dos casos, deveria ficar recluso até por muito mais tempo do que se fosse condenado juridicamente, imputado. Deveria ficar recluso não só por causa dos fatores acima mas também pelo fato de que, se o Brasil não oferece recursos para eles, a sociedade não pode pagar, não pode ser obrigada a ser lesada, morta, atacada, estuprada, esfaqueada, queimada, etc, por estes indivíduos altamente perturbados, à larga. Mas, infelizmente, é para isto que meus laudos servem: para “passar a mão na cabecinha”, dizendo:  “Você é doentinho, é perturbado, é fruto da família, é fruto da sociedade,  não “merece ficar preso”, “as cadeias/reclusões são desumanas, atentam contra a dignidade”, procure a psicóloga”, “não faça mais isso não”, “é errado agir assim”, “seja bonzinho”.

A outra situação é aquela – como vimos no “serial killer” de Goiânia conforme notificado pela imprensa –  e muitos outros delinquentes, no qual os próprios criminosos, suas famílias, “sabem-se doentes”, dizem que “eu sempre fui doente”, mas nunca procuraram psiquiatra. Muitos dizem: “Eu não queria ir médico de doido”, “não me achava doido”, “cheguei a ir mas não segui”, “não quis tomar remédio que me dopasse”, “doutor , ele não quer tratamento”, “não queria que ninguém soubesse que eu ia em psiquiatra, tomava remédio para doidos”, “os remédios me dopavam”, etc. Ou seja, se é verdade que em algum momento se julgaram doentes, ou a família os julgou doentes, nunca quiseram fazer nenhum tratamento. Isto tem de ser levado em conta nos julgamentos e não simplesmente pegar um laudo e dizer : “Ele não é culpado por ter cometido o crime, é doente mental.” Cadê a responsabilização da família, do governo, do próprio paciente, por terem recusado tratamento? A sociedade, que vai ser morta, estuprada, queimada, etc, por eles soltos, não pode ser responsabilizada por este erro do Estado, erro do paciente, erro da família.

Por que só agora, que foram pegos no crime se dizem “coitados”, se dizem “doentes nunca tratados”, se dizem “altamente sofredores com problemas psiquiátricos”? Só por que estão presos? Só agora que o Nestor Cerveró (“petrolão”) descobriu que tem “depressão” e tem de ir na psicóloga fora da prisão? Foi a depressão que o levou a ser corrupto? Se era a depressão, por que não a tratou antes? Por que sempre “recusaram a psiquiatria” e , depois de presos, querem recorrer à “Geni”? (aquela que “gosta de apanhar” e continua a “dar pra todo mundo”). Mesmo se tenha ficado depressivo justamente porque foi pego, isto não justifica seu crime, não anula em nada a criminalidade, ilicitude do ato. Por que a tal “depressão” nunca apareceu antes do roubo, só depois dele? Pelo contrário, antes de serem pegos estavam é muito “animadinhos” para gastar o que fora surrupiado dos cofres públicos… Agora a “doença psiquiátrica” vem sendo usada para livrá-los do crime? Não tenho a pretensão de mudar nada no Brasil com este meu “desabafo”, mas, como sou espiritualista e acredito na evolução do espírito humano, tanto quanto das estruturas sociais feitas por ele, está aí plantada uma semente para reflexão.

 

(Marcelo Caixeta, médico especializado em psiquiatria geral (ABP), psiquiatria do adolescente (Univ. Paris XI) e psiquiatria  criminal (forense) pela Assoc. Bras. de Psiquiatria)

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