Opinião

Não deixem Ponte Alta do Bom Jesus se acabar

Diário da Manhã

Publicado em 22 de outubro de 2016 às 01:51 | Atualizado há 9 anos

Tenho uma dívida de gratidão com meu sobrinho Antônio Carlos Póvoa, o Toinho de Casimiro. Na época em que pipocava a malfadada “Operação Maet”, com a imprensa me detonando de todas as formas, até alguns de minha família se esquivavam de falar comigo, naquela natural atitude de quem só se lembra da gente quando estamos por cima. É bem verdade que meus irmãos prestaram-me toda a solidariedade, à exceção de dois, que, querendo ser mais realistas do que o rei, seguiram a crítica do populacho, e não tiveram o cuidado de averiguar o razão das coisas.

Mas dei o troco à minha moda: no dia do aniversário de um deles, fui um dos poucos irmãos a telefonar-lhe para dar os parabéns, e a estupefação dele em ver que eu estava falando com ele como se nada soubesse, foi minha recompensa. O outro, que vivia debicando meu nome até nas rodas de bar, fui mais incisivo: na última vez em que estive lá no Duro, tive a cadência de hospedar-me justamente com ele, apesar de ter meia dúzia de outros, meus defensores, insistirem em arranchar com eles. Tratei-o como se nada tivesse acontecido.

No fragor dos comentários, Toinho, que, aposentando-se pela Embratel, foi dar com os costados em Ponte Alta, onde firmou residência, tomou a iniciativa de mandar cartas, espécie de desagravo à minha pessoa, para todos os da família, o que surtiu um efeito muito bom, pois dias após a carta, fizemos uma reunião de família no “Clube da Maçonaria” de Dianópolis, onde pude sentir que o diabo não é assim tão feio como se pinta. Todos me receberam de braços abertos.

Mas, voltando a Toinho: numa das duas vezes em que estive no Sudeste, justamente para o aniversário da mana Luzia, em Taguatinga, em julho passado, ele me convidou para comer seu famoso pirão de taioba com pequi, e passei bons pares de horas vendo aquela Ponte Alta, antes goiana e depois tocantinense, totalmente diferente daquela em que, nos tempos ginasianos, viajava a cavalo para cobrir os quase cem quilômetros para viver a Ponte Alta da época. Saíamos de Dianópolis madrugadinha para dormirmos na fazenda “Azuis”, pouco depois da hoje cidade de Novo Jardim, pra no dia seguinte, surupembar cedo e rumar pra Ponte Alta, esquadrinhando a estrada sem deixar de passar pela Cabeceirinha, o rio Salto, a fazenda Vaca Morta (hoje, Ipanema), pela Boa Vista Belém, passando pelo Ribeirão do Inferno (hoje, Ribeirão Bonito) pela fazenda Angical dos Freire, pelo já falado Jacu, para depois chegar ao fim da jornada.

Os dias de férias em Ponte Alta, onde moravam meus irmãos Casimiro, pai de Toinho, e Luzia, que era diretora do grupo escolar, eram como horas e dias subtraídos do Paraíso: íamos banhar-nos no córrego “Pedra de Amolar”, que gorgoleja na saída para Dianópolis, e nos divertíamos nos poços que se formavam esquecendo o tempo: outras vezes, meu cunhado Tonico, marido de Luzia, inveterado pescador, pegava-me com a tralha de pesca e íamos só buscar piabanhas no rio Ponte Alta, no famoso remanso “Mata Fome”, cujo nome era a certidão de não ser preguiçoso de peixe; outras vezes, arrebanhávamos uma catervagem de meninos e íamos passear no Jacu, próspero povoado a uma légua dali, onde pontificavam os troncos das mais proeminentes famílias da região: a matriarca tia Cassimira, Conrado, Custódio, Tito Freire e tantos outros que estão devidamente acomodados na nossa memória.

Na Ponte Alta de meus tempos, convivi com muita gente: tia Rosalina (mãe de Atelânio, hoje pastor, que ia comigo caçar mocós nas caleiras do Mamoeiro), Sabino, Doroteu, Sebastião Freire, Sinhorzão, tia Deija, Zé Mário, Zé Bananal e seus filhos Louro, Ireno, Gringo e Véio; os filhos de tia Alzira, Djalma, Diraci e Dirvani (de quem tomei a namorada, Maria de Nezim Cavalcante, em plena festa do padroeiro, Senhor dos Aflitos), João Carlos, Waldir, Teodoro (que pra nós era “Sinhozinho”), os filhos de Moisés Carlos, Alcy, Aldy e Aldecy; lembro-me do mano Casimiro e minha madrinha Nilce, que tinha os joelhos calejados de tanto rezar em frente de um velho oratório; a velha Águeda, o mudo Liberato, as Teodoras Carlos e Freire, o velho Hermínio, Santo Freire, João Carlos Freire, que foi morto nos gerais da Bahia por questões de terras, Ari e sua mulher, Dulce, toda a descendência do velho Totonho Carlos, patriarca da família, e tanta gente.

Pois bem, conversando com Toinho durante a taiobada que comíamos, acerca dos amigos da época, soube que a maioria dos meus conhecidos já estava no outro mundo. Assim, obviamente, desisti de fazer-lhe minha visita. Tinha me esquecido de que o tempo passa.

Contemplei a Ponte Alta de hoje: a praçona já descaracterizada, os casarões dos mais velhos da família Carlos abandonados; a casa de Santana de Letícia fechada, as ruas tomando outros rumos, os quintais que eram ornamentados de jaqueiras e pés de manga foram invadidos pela capoeira atopetada de pés de mamona; enfim tudo está diferente.

O Pedra de Amolar virou um mijinho de água, que não dá nem pra se lavar a cara, quanto mais pescar piabas como no meu tempo; o “Mata Fome” secou, tudo assoreado por conta de um tal balneário que o então prefeito Paulo Sandoval inventou de fazer na sua gestão; o Jacu transformou-se numa tapera mal-assombrada, pois até a estrada real, e depois a rodovia, que passavam lá dentro, foram desviadas quando fizeram o asfalto.

No mais, deu-me uma coisa ruim aqui dentro quando vi a Ponte Alta de hoje, limitada a umas poucas pessoas das famílias tradicionais, e que foi invadida por gente estranha, inclusive, tirando Waldemar Carlos de França (primeiro prefeito), meu cunhado Tonico, Davi Ursino, João Freire e por último o José Luciano, os de que me lembro, vem tendo como prefeitos os não naturais da terra, pois o povo esguaritou pra Taguatinga, Brasília e Goiânia, e à exceção de Toinho, ninguém quis voltar à terrinha para dar-lhe um pouco de visão progressista.

Deus que faça um milagre para repor a Ponte Alta que vivi, e Toinho, a quem tenho aquela dívida impagável, tem a árdua tarefa de tentar repor as coisas, pois não é qualquer filho da terra que deixa o conforto de Palmas pra viver de recordações na sua terra.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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