O capador de menino
Diário da Manhã
Publicado em 30 de janeiro de 2018 às 21:14 | Atualizado há 7 anosNestes dias de hoje, a gente fica recanteado sem aquele tempo de ficar a prazo conversando com os amigos, que muitas vezes moram longe, e nem sei como os Correios sobrevivem sem a postagem, pois carta é uma coisa que virou alcanfor e poucos usam, depois que inventaram o e-mail, da mesma forma que aposentaram a tabuada, depois que inventaram a calculadora, que semeou a preguiça mental, que menino de hoje não sabe mais as contas de diminuir e de dividir por.
A valença é que esse fuxiqueiro virtual, que tem o apelidinho de Facebook, chegou numa hora em que a gente fica caqueando tempo pra falar com alguém, que muitas vezes mora numa lonjura medonha. E como num passe de mágica, estamos todos fagueiros papeando com pessoas que sumiram da gente há muitos anos, cuidando até que já morreu.
Agora, que estou começando a mexer com essa nova ferramenta, comecei a desenterrar papos longínquos, publicando diariamente artigos e causos e postando pros feicebuqueiros.
Estes dois dias, anteontem ou tresanteontem, o meu amigo Edilton Bartolomeu, que vive num saboroso e paradisíaco retiro lá no Rio da Conceição, ao ler um dos meus causos, comentou: “Estes pequenos detalhes nos levam a uma leitura bem demorada, para não perder nada. O velho Elias sapateiro, tinha um buracão no meio da testa, o povo falava que tinha sido tiro de bacamarte, quem lembra?”
E quem não se lembra? Naquela nossa época de irresponsabilidades de menino, na Rua de Baixo, do lado esquerdo de quem descia pro “Poço da Lapinha”, no córrego Getúlio, ficava a tenda do velho Elias Cavalcante, sapateiro remendão, numa casinha de enchimento espremida entre a do cabo Gregório e a de Chico Vieira. Ficava recuada, de forma que o terreno entre as duas casas vizinhas era o seu terreiro da frente, de chão batido. No quintal cheio de mata-pastos, uns pés de goiaba branca e uns de pinhão brabo, se me lembro bem.
O velho Elias não tinha filhos, mas tinha um casal de filhos de criação: Gregório Açougueiro, meio branquelo (acho que era gente de dona Zefa de Cornélio, e sua mulher, Ana, mulata meio retinta, de sorte que nem sei qual deles era sua cria. E eles tinham um filho, por nome Zé do Socorro, cujos trejeitos pouco masculinos contrastavam com seu machíssimo avô-torto.
Elias Cavalcante, nordestino não sei de onde, chegado no Duro não sei quando, vivia com a velha Maria, companheira de muitos anos, que matraqueava como maritaca na goiaba, e pra gente sair de lá depois de uma visita, era preciso esperar na hora em que ela tomasse fôlego, pra gente sair.
A tenda do velho Elias ficava ali mesmo na sala de entrada, e ele, brancão, pelancudo, sempre estava sem camisa. Seus cabelos acho que eram inimigos de pente, e trazia no meio da testa um afundamento, que – dizendo ele – era resultado de entreveros com cangaceiros no Raso da Catarina, nas caatingas da Bahia. Quase sempre, botava um chapeuzão de couro quebrado na testa, já ensebado, para ilustrar as pantomimas. E contava bravatas que dariam inveja ao folclórico Barão de Munchausen.
E no ofício de bater sola pra consertar sapatos e precatas, ele exibia uma faquinha já meio cobó e com o gume arredondado e desgastado de tanto respaldar seus consertos, que ele dizia que cortava “no vento”, ilustrando com um causo de seu grande repertório de mentiras inacreditáveis:
– Eu tava passando num capão lá no Pernambuco, e quando dei fé, óia o que vi na minha frente: um aribê de onça pintada, deitada debaixo de um pé de umbu, roncando depois de ter comido um bode e duas cabras. Eu cheguei devagarzinho, peguei esta faquinha, que já era amolada desde aquele tempo, e fiz um corte na testa da bichana, e com cuidado, amarrei o rabo dela com uma correinha de couro e numa raiz do pé de umbu, de formas que ela ficou sem jeito de sair.
Nós, de olhos esbugalhados, ficávamos extasiados, diante da valentia daquele homem, que dizia ter espalhado medo até em Lampião e sua cabroagem, esperando o desfecho do causo. E ele arrematou:
– Aí, eu peguei este meu chapéu de estimação, que carrego há mais de quarentanos, e dei uma chapeuzada no lombo dessa bicha, que acordou de soco e arrancou no mundo… mas seu couro ficou lá pregado na raiz. Muito tempo depois, encontrei com aquela besta-fera começando a criar penugem do couro que tava nascendo.
E nós, acreditando e botando o velho Elias no panteão dos nossos heróis. A velha Maria, ali ao lado, só confirmando as bravatas, como testemunha, tal qualmente Terta, companheira do personagem Pantaleão, de Chico Anysio.
E a gente tinha verdadeiro pavor do velho Elias, pois ele fazia umas caretas e gungunava coisas, dizendo que era cabra macho, matador de cangaceiro, compadre de Corisco, e nos causava um verdadeiro terror, dizendo que era valentão e capador de menino, fazia e acontecia sem um fanisco de medo.
Certo dia, a velha Maria foi visitar a gente, e pegou a contar onde ela e o velho Elias tinham morado: Serra Talhada, Cabrobó e uma dezena de outras cidades, dizendo os anos em que viveram nos diversos lugares: “Em Mossoró moremo cinco ano; em Embiruçu, oito ano, em Corrente do Pioí, seis ano…” e foi desfiando sua fanfarronice. E eu – menino é cheio de inventiva e istúcia – ali de lado, fazendo as contas numa folha de papel.
Quando ela acabou de relacionar suas moradias, somei os anos: ela tinha seus sessenta e poucos anos, mas a soma de tempo em que os dois viveram feito ciganos dava quase cem anos.
Tão de repente como surgiram, Elias Cavalcante e a velha Maria sumiram, e nem sei se morreram lá no Duro, pois mudei-me de lá nos anos sessenta.
Mas a gente do meu tempo guarda até hoje a imagem temerosa do capador de menino, que nos causava um medo excomungado, mas temperado muitas vezes com admiração com suas narrativas de valentia e coragice de causar inveja.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas – Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado – liberatopo[email protected])