Os versos singelos das miudezas
Diário da Manhã
Publicado em 5 de abril de 2017 às 03:03 | Atualizado há 8 anos
O mundo é feito de miudezas, de coisas pequeninas, aparentemente insignificantes, mas carregadas de sentidos. Só mesmo a ternura do verso, com olhar investigativo, pelo coração, pode reconhecer esse legado que, todo dia, pela ambição exacerbada e a luta da vida, poucos percebem.
Tesouro ignoto, perdido em seu mundinho pequenino. Joias preciosas do escrínio afetivo dos que percebem o imperceptível.
Fiz meus versos para essas miudezas, tesouros infindáveis nascidos do chão, que todos os dias enfeitam a corrida de nossos passos, mas são inaudíveis em seus cantos, invisíveis em sua silente beleza.
Para os buritizais, perdidos nas veredas do sonho, os versos singelos, mas épicos, em que me transponho neles mesmo, quando “Eu sou o buriti da vereda”:
Dilui-me na paisagem, pois andei cansado.
Caminhei por estradas tantas e me repousei na vereda
Abri longas raízes no chão, de repente, nasci,
Agora sou um frondoso buriti.
Nem mesmo sou o poético buriti perdido, de Afonso Arinos,
O buriti sussurrante, de Leo Lynce,
O buriti do sereno, de Armênia de Souza,
Não, apenas um buriti plantado na terra molhada da vereda.
E as minhas palavras saem pelas folhas, pulsam,
Frenéticas e frementes, eloquentes e esverdeadas.
Tenho o contato agora com o verbo iniciático
Em voz, em flor, sou um verso muito antigo.
Eu sou desse tempo, pois, que as folhas falavam,
E abraçavam em imensos braços vegetais.
E agora – buriti – vejo a falsa civilização
Pois sou ação, elemento telúrico e desmanchado.
Sou perto de quem me criou e me manteve – estranho
Sinto da terra uma força em essência – proteção.
Elemento que veio de abismos encobertos
Do âmago do mundo desconhecido e perfeito.
Agora eu vi, com olhos cascudos de buriti!
Nesse poema cantam meus passarinhos.
Eles escutam o murmurejo dos leques de minhas folhas.
Sons inaudíveis, mas tão possíveis em tantos mundos,
Na comunhão que vem até das pedras antigas e caladas – tão duras!
Há um tempo ausente nas modificações possíveis
No tempo ocluso das coisas impossíveis – sei lá, sou buriti!
Meu tempo agora é tenro e macio
E me ergo altaneiro balançante para a luta – guerreiro!
Esses homens, eu os vejo da minha altura,
Na cobertura tão bela de meu arbóreo manto.
Vejo-os, mas prefiro as quaresmeiras, os calangos,
E os horizontes que se alongam nesse planalto incessante.
Vejo os homens daqui dessa altura em que cores se misturam.
Observo-os com suas maquininhas ingênuas e fedorentas
Correndo a planície desse chão, sem ver as minúsculas florzinhas,
Que se derramam pelo caminho, tão sem pressa!
Apressados, lépidos, apressados ainda, zonzos,
Vão e vêm pela planície, arquitetando o tempo que não possuem;
Esses homens correm tanto, esbaforidos e a pedra me diz, na calada mudez,
Que caminham pressurosos para a sepultura.
Ouço crescer o cerne, a rigidez, a envergadura. Ouço o estralar.
Estralo em ternura de verso ao fazer esse verde poema
Inventário das raízes que cresceram vigorosas
E busco a noite carregada de luzes sobre minhas folhas.
Meus olhos cascudos não se cansam de contemplar o mundo
No frescor dessa vereda com meus amigos, balançantes ao vento.
Há cores no longínquo. Ternuras de brisas
Acalanto de amanheceres.
Minha sombra se debruça sobre a vereda
Uma mina cantante corre entre nossas raízes
Levando a música perene para outras paragens
Em vidas sucessivas de evoluir.
Vejo miudezas de um mundo de espantar
Joaninhas faceiras levando recados, jaós cantantes,
Formigas diligentes, o pranto doloroso dos inhambus,
Marias fedidas, com suas catinguinhas no mato.
Vejo dentre esses seres pequeninos os homens
Turbulentos; não se entendem como as formigas,
Alastram-se em ódios, se entredevoram
Não possuem a fluidez do lambari do rio.
Se eu não fosse buriti eu seria um lambari!
Não só pela rima,
Mas pelo brilho e pela alegria
Nas águas dos remansos e dos corguinhos.
Não entendem esses homens o processo das formigas
A indústria engenhosa das abelhas com seus prismas hexagonais
Na geometria certinha dos favos, sem erro,
E nunca estudaram matemática essas doutas operárias.
Nem mesmo os homens tão pequenos que vejo
Entendem as aranhas com suas teias nos caminhos
Como profissionais de levezas pênseis e transparentes
No esforço inicial que nasce só nas coisas simples.
Nem mesmo esses tolos observam as figurações de equilíbrio das plantas
Que se movem com sentido e significado.
Há perfeições de nervuras nas folhas
Como uma palma, um limbo, uma mão aberta, esperando.
As folhas são feitas para recolher os toques das auroras!
Nas folhas de todas as plantas,
Deus desenhou belas formas abstratas
Singelas molduras que carregam séculos
De profunda significação!
Nem mesmo os tolos seres humanos entenderam que a árvore
Fez no chão um ninho de raízes escondidas
Que sustentam colunas perfeitas, estirpes,
Afeitas aos ventos e aos perigos.
Até mesmo conquistar o voo esses tolos ousaram,
Sem a leveza despreocupada dos passarinhos.
Não notaram a fluidez das aves, o descontínuo, o não tempo
Apenas emergiram da catástrofe do chão. Apenas.
Que pena!
Assim no meu mundo buriti, vejo o esboroar de um plano!
Morrerão por completo os homens
Antes das formigas, das aranhas, das curicacas, das Marias fedidas.
Fenecerão antes das aves migradoras, tão niveladas
E antes dos lambaris prateados dos corguinhos, seus mundinhos pequeninos.
Não terão visto o sol como vejo na perspectiva de minha vereda!
E nem sentirão luares derramados em cores dúbias em cada noite.
Lembrando antigos amores desbotados
Nem verão folhas caindo de mansinho com pena de acabar
O mundo sem pressa no calado das sábias pedras tão imóveis.
Eu sou o buriti da vereda
Depois de mim o que restar, não resta, não muda,
Pedaços de profunda solidão desses homens
Com suas maquininhas catingudas.
No leque de minhas folhas ao sabor dos ventos
O cântico ancestral tecido com meus parceiros da vereda.
Cantarei tempo sem tempo, sem medo tempo,
Cada vivo morre uma parte da morte de cada outro.
Meus olhos são cascudos.
Do alto de meu mundo buriti
Compreendi
Esverdear o tempo na viração das folhas.
E que agora sei
É que sempre buriti serei!
E os pés de amora, derramando essências no balançar das folhas, em todas as árvores soltas no tempo, que contemplam o mundo e sabem do seu destino, são ensinamentos constantes que passam despercebidas de maneira geral. Em versos construí sentidos “Na cátedra do pé de amora”:
Ao ciciar alegre da matutina
Nos galhos do pé de amora
A cada hora,
Rompe o dia.
Alaridos alegres da passarada
Que, sem inquietações ou angústias,
Imaginaram um Deus
Que pintou de negro o céu
E espalhou por ele vários brilhantes
Que, na manhã do novo dia,
Derreteram-se em claridade de diamantes…
É a manhã vencendo o ciclo
Abrindo mais um dia, no universo.
E, em verso telúrico,
Tudo se move com sentido
E tudo caminha adiante, a cada momento,
No imperativo da lei do aperfeiçoamento.
Nós, os tolos humanos,
Criamos noites insones,
De angústias e medos
E tantos segredos
No sombrio dos corações.
Sejamos como nossos irmãos,
Os passarinhos,
Que na singeleza de seus ninhos
Constroem infinitos laços
Na teia dos minúsculos raminhos.
Por que (des) construímos?
Nascem manhãs repetidamente,
E não somos alados,
Somos calados, no sombrio da alma.
Onde a calma? Onde a paz? Onde a harmonia?
Rompe o dia
Nos galhos do pé de amora
E os passarinhos continuam
No ciciar alegre da matutina!
E nós, os tolos, presos na rotina…
E os pés de mamão, nascidos no lixo, nos monturos, ou plantados nas roças, com seu desenho bonito, na geometria do tronco e na lição de comunhão de seus frutos: Quem os vê?
Solitário, ergue-se imponente
No monturo de lixo do canto de muro.
Mamão verde. Mamão corda. Mamão macho.
Papaia. Formosa
Tronco geométrico, desenhado.
Seguro, ele segue seu percurso
De elevar-se acima de tudo
E apesar de tudo
Ele alcança as alturas
Embora a imundície de onde veio…
Altivo, ele ganha o meio
Abre folhas alongadas
No pequeno tronco de nós salientes.
Busca sempre o alto, firme e ereto
E no correto do seu destino
Sabe-se importante naquilo que lega
O fruto…
Mamão cozido para o porco,
Picado com sal na grande tachada.
Mamão riscado sobre o jirau
Para escorrer o leite pegajoso
E amadurecer mais gostoso.
Mamão ralado, mamão picado
Verde bonito no fundo de ouro do tacho de cobre.
Mamão maduro, aberto, compoteira natural
Cheio de sementes pretinhas
Grudadas na polpa
Como pequeninas joias derramadas…
Ele não se entrega
Rompe em flores ebúrneas, cheirosas,
Que, queixosas, derramam-se em frutos
Que despontam no tronco rugoso.
Pé de mamão, você sabe do seu destino
Nascer no lixo, ganhar o espaço
E em cada passo de seu tempo
Romper-se em alimento.
Teus frutos vão crescendo, alongando,
Bebendo a seiva que brota de teu tronco.
Os frutos, juntos, precisam do calor
Para crescer,
Só amadurecem assim, juntinhos,
Na oferta generosa que vem do alto…
O fruto unido, grudado
De tamanho variável, carnudo
De polpa vermelho alaranjado
Colhido ainda verde é riscado na faca,
Ferido, machucado…
Generoso, pé de mamão, você fornece os frutos
E até teu tronco vira doce
Doce de pau de mamão. Trabalheira danada
Pau picado, lavado, ralado, cozido com leite
Transformando o tronco em alimento.
Tudo de você se aproveita, mamoeiro!
Chá de folha de mamão, limpa bucho
Estripa o mico,
Chama o Juca,
Das lambanceiras da barriga
Da misturada de todo dia.
Fruto verde, fruto amarelo, salpicado
Mamão colhido, mamão comido…
Olho sua generosa oferta, mamoeiro
Da altura de seus frutos grudadinhos
Unidos numa simbólica acolhida
De todos amadurecendo juntos
Porque somente unidos
Entregamos o melhor de nós
No calor evocativo do outro…
Como o homem, o mamoeiro,
Você é separado em macho e fêmea.
As flores dos machos não produzem
E são grandes e dependuradas,
Disformes e alongadas,
Como as dos homens…
Às vezes saem diferentes, dão frutos (?!)
E nascem mamões machos
Feios, alongados, caroçudos
Disformes, enojados…
Como os diferentes do mundo,
Renegados…
Mas os verdadeiros machos (?!)
Fecundam as flores fêmeas
No pólen sagrado, milenar
Saindo o fruto,
Ao gosto alimentar…
Mamoeiro querido
Nascido tão distante, presente há tanto tempo
Receba este verso singelo,
Nesse momento.
Pé de mamão abençoado
Do lixo ao fruto oferecido
Deixa sua marca, seu legado,
Como um rito sagrado
Você é, mamoeiro,
Retrato de Deus verdadeiro
Nos teus frutos em comunhão
Devias, aos homens, servir de inspiração!
E as cascas das árvores, com suas rugosidades e resistências nos falam muito ao coração, pelo ideário de proteção e beleza no cenário do cerrado.
Li, nas saliências do teu tronco, rugosidade das cascas,
História imensurável.
Percebi, que há rosas perdidas no teu pranto
Invisível,
São pétalas inúteis, pois que o tempo
Correu desesperado entre o teu tempo e o meu.
Assim, no agora, junto a teu tronco rugoso,
O irreparável nos inunda, é o abismo.
O que nos desamarra
Como se fôssemos, outrora, pétalas diversas,
Da flor que, por fim, não nasceu,
Flor etérea do mundo meu!
Não te importa que tantas manhãs se tenham ido
Tudo lhe é sombra afastada, sempre mais de bruma.
Apruma teu tronco tão forte e segue
Se existe céu, que importa tudo o que no mundo,
Passa tudo e acaba – você sabe com certeza,
Não sobra nada!
Se as rosas etéreas passam como ilusões vadias
Tuas cascas agregam sonhos e fantasias
Soltas ao vento, errantes,
São fragmentos de instantes
No céu onde tudo, por certo será eterno!?
Agarro-me ao teu áspero tronco.
Todas as coisas que sonhei; tudo o que não sonhar quiseste
Hão de voltar como em setembro
No florescer de um simples galho
Nas flores que aparecem, de onde?
Ao toque de Deus.
Na transparência, no ar, no céu azul
Que vejo coado entre teus galhos e folhas
Pedaço de céu tão pleno
Nas cascas de teu tronco, ásperas,
Anseio vida
Na forma iluminada, invisível,
Que vem de ti.
Li tudo isso no teu tronco
Nas páginas sublimes de tuas cascas
Li, comovido,
Uma história de paz.
E toda a natureza, pressurosa, serve a Deus, no balançar das folhas, na viração dos leques das palmeiras dos buritis, da grandeza dos bacuris, dos cruzeiros perdidos nas estradas com seus significados, na maciez do capim dos pastos; enfim, no verde da paisagem.
Tudo nesse mundo serve a Deus
E tudo nasceu para servir.
As pedras faiscantes ao sol, luzidias,
Servem a Deus.
Os grandes rios, lagos e mares
São espelhos que refletem o criador.
Tudo nesse mundo
Serve a Deus com amor.
As plantas de tons variados de verde
Os sons das matas com seus tantos bichinhos
Com infinitos carinhos, despercebidos
São oferecidos a Deus.
As minúsculas florzinhas rasteiras
Das ervas daninhas,
Sozinhas e desprotegidas
Elevam-se a Deus
Em preces incontidas
De infinito amor.
O sabor de cada fruto do mato
Tem a essência de Deus
Os bichos tantos, até os mais feios,
Refletem a presença do Altíssimo, tão clara
Mas, despercebida…
A paz por Deus concebida
Na hora suprema da criação
Conferiu a cada coisa
Infinita significação
E ação para mover o mundo
Dos mais recônditos
Profundos…
No monturo de lixo Deus está.
Na boneca de milho verde Ele se mostra.
Nos passarinhos em revoadas matinais
Ele fala dos sinais
Que devemos ver e sentir
Para um novo e diferente agir…
Na poeira das estradas Ele se levanta
Do chão ao céu, suas marcas se sustentam
Tão perceptíveis no vento fresco da tarde
Na lenha que arde,
Nas nuvens fugidias
Nos lírios que fenecem
E nos arrozais que crescem
Para alimentar…
Deus está no ar
Diluído em cada fração do tempo
Que passa depressa, violento,
E não nos deixa retornar…
Nos cruzeiros antigos, abandonados, esquecidos,
Deus Se faz ali protegido
Pela singela natureza
Que, com certeza,
Traduz a luz eterna
Da paz dos céus…
Nas madeiras carcomidas e secas
A alegria de Deus se reflete tão pura.
Cura nossa alma das velhas tristezas
Pelos dias, derramadas…
Amadas presenças de Deus na terra
Tudo encerra a definitiva mensagem
Na passagem das eras, pela natureza
Que emoldura Deus em nossos dias…
Tudo serve a Deus na simplicidade!
Deus Se apresenta a nós, na saudade.
Assim, nos mundos pequeninos dos reinos de Goyaz, a poesia derrama-se plena de sentido. Na pressa do mundo de hoje, esses tesouros passam despercebidos na lição que traduzem em paz e ternura. São presentes de Deus no caminho de todos nós e que, na insana batalha pela sobrevivência, ou pelo apelo profundo das vaidades, passamos sem observar, contemplar e amar.
Mundos pequeninos da flor da lobeira, das florzinhas das beiras dos caminhos ou dos monturos de lixo, dos leirões de milho como bandeiras nas roças; o milho com suas bonequinhas desfilando, balançando os cabelinhos ao vento; as fragrâncias dos campos e jardins, perfumes tantos, vindos de onde?
O sentido das coisas. Todas as coisas existem para nossa harmonia e alegria, nascidas do chão, livres e belas, gratuitas e puras, enchem nossos olhos cansados, de uma santa ternura!
(Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Letras e Linguística pela UFG, pós-graduado em Literatura Comparada pela UFG, mestre em Literatura pela UFG, mestre em Geografia pela UFG, doutor em Geografia pela UFG. Escritor, professor e poeta) [email protected])