Opinião

Ulysses Guimarães – morre o homem, fica a história

Diário da Manhã

Publicado em 13 de outubro de 2016 às 00:31 | Atualizado há 9 anos

Em 1992, logo após a morte de Ulysses Guimarães, que liderou a oposição no Brasil contra a ditadura militar e como ninguém lutou pela democracia, o então deputado estadual, hoje governador de Goiás, Marconi Perillo, escreveu um singular artigo, publicado no Diário da Manhã, onde fez um apanhado da atuação de Ulysses e mostrou como ele contribuiu para que o País atingisse o estágio de maturidade política que experimenta hoje. O Brasil, naquele acidente de helicóptero nas águas do litoral fluminense, perdia uma das maiores lideranças políticas de sua história. Como protagonista ao lado de Ulysses Guimarães em muitas de suas batalhas, Marconi Perillo lamentou a perda, mas também ressaltou a trajetória da liderança dele, relembrando passagens históricas da maestria que exerceu no mundo político, servindo de exemplo de dignidade para a geração que com ele conviveu e as perpetraram o futuro de um Brasil mais justo e mais digno. A seguir: a íntegra do artigo.

 

O Brasil amanheceu menor na última terça-feira. Uma parte importante dele estava, segundo as primeiras informações do dia, desaparecida em um helicóptero, que saiu de Angra dos Reis e não chegou ao seu destino. A notícia dava a sensação a todos nós que um corpo humano, que abrigava e personificava a ética, a seriedade, a transparência, o estandarte vivo da democracia, sucumbira em voo com destino ao Criador.

O Brasil, agora menor, chora o desaparecimento de Ulysses Guimarães. A minha geração aprendeu a ver neste senhor, de cabelos brancos e olhar perdido, o símbolo da resistência ao regime militar.

Seu ombro foi consolo às mães de desaparecidos, órfãos de pais sumidos. Por ironia do destino, antes de admitida sua morte, Ulysses também ficou muito tempo sumido.

Sua voz devorou, como o mágico que engole fogo, as espadas, as metralhadoras do regime militar. Com ela dava chicotadas morais em militares e civis, serventes e servis ao regime autoritário. Suas pernas levaram-no às prisões, aos cárceres, aos porões da ditadura, bem como aos palanques e trinas memoráveis da antiditadura de 1974, das diretas de 84, da Constituinte de 86 e do impeachment em 92. Foi Ulysses Guimarães o cúmplice da liberdade, alcoviteiro da democracia, o sacerdote da lealdade. Nunca lhe faltou o desprendimento, pelo contrário, sobrou-lhe coragem, inclusive a de enfrentar a ambição pessoal que destrói biografias e interrompe caminhadas rumo ao “pódium” do reconhecimento popular.

Presidiu o Brasil sem ser o seu presidente, nos momentos de crises era aplicada sua receita de sabedoria, lealdade e transparência. Como amante da democracia, proclamou: “A democracia verticaliza vocações e talentos. A ditadura engessa na horizontalidade medíocres, mentirosos e corruptos”.

Agente da luta libertária, cobrando dela apenas a própria liberdade, sempre que podia lembrava dos companheiros que morreram no campo de batalha, como em certa ocasião lembrou: “Os nossos mortos levantem de seus túmulos. Venham aqui agora testemunhar que os sobreviventes da invicta “Nação Peemedebista” não são uma raça de poltrões, de vendidos, de alugados, de traidores. Venham todos. Venham os mortos de morte morrida, simbolizados em Juscelino Kubstichek, Teotônio Vilela e Tancredo Neves.

Venham os mortos de morte matada, encarnados no deputado Rubem Paiva, o político; Wladmir Herzog, o comunicador; Santo Dias, o operário; Margarida Alves, a camponesa.

Não digam que isto é passado.

Passado é o que passou. Não passou o que ficou na memória ou no bronze da história.

A nação brasileira está, neste momento, órfã do seu guia, do mentor intelectual dos crimes cívicos, que feriu de morte uma ditadura no passado e apunhalou a corrupção no presente.

Como os indianos sem Gandhi, os americanos sem Lincoln, os brasileiros estão hoje com a sensação de ter perdido o pai de um dos institutos mais caros a uma nação, o sentimento de unidade nacional. Foi ele o único a exercer a liderança da nacionalidade, sem a faixa presidencial e o poder dela decorrente. Exerceu a liderança da honra e pela honra, da luta e pela luta, da seriedade e pela seriedade.

Nos momentos mais difíceis da Nação, estava Ulysses a sinalizar o caminho por onde deveria seguir o País desgovernado. Como guarda de trânsito, ao passar da carruagem sempre lhe sobrava a poeira dos tresloucados pelo poder e ávidos de cargos, funções e mordomias.

Com a indumentária do paletó e da gravata, tendo com arma a palavra e a razão, derrotou inúmeros exércitos. O primeiro deles, o da prepotência, quando a ditadura ousou impedir-lhe o direito de falar ao povo baiano, sinalizando um tempo novo, de mudança, de esperança e de democracia. Na praça pública, afastando com os pés os cães de guarda da polícia militar, falou sem ferir, ensinou sem cobrar ao sargento arrogante que tentara impedir de falar: “Me respeite cidadão, eu sou o Presidente Nacional da Oposição”. Para, mais adiante, com a palavra e só com ela, dar ordem unida de retirada da tropa: “Soldados da minha Pátria, cachorro não é urna, baioneta não é voto. Saiam da praça que não lhes pertence, a praça é do povo, como sabiamente declarou o poeta”. A retirada foi imediata, como nunca se podia esperar. A autoridade moral de Ulysses falou mais alto que o soar da voz dos comandantes.

No início da década de 70, quando a ditadura experimentava o auge do seu sucesso econômico, Ulysses deixou para trás o conforto dos gabinetes, o ar condicionado dos plenários, e empunhando a bandeira nacional, tendo o Hino Pátrio como grito de guerra, proclamou aos quatro cantos do Brasil a necessidade urgente de volta do País à democracia, disputando com inegável coragem a vaga de Presidente da República, numa campanha que ele próprio assim a definiu:

“Recordo que não passou a saga da anticandidatura”.

Não passarão nunca os dias inaugurais da fascinante campanha de 74, inaugurada num barco balançando com gaivota no Rio Amazonas. Convocadas pelo apito, as populações ribeirinhas acorriam alvoroçadas. Vinham às carreiras, a criançada à frente, vinham os homens de sandálias e dorso nu, as mulheres tostadas de sol e esgotadas pela procriação e pelo sofrimento, os cachorros latindo e os jericos de orelhas assustadas. Apesar dos arreganhos dos meganhas da opressão, vinham todos.

Não sabiam bem porque e para que, mas vinham.

Queriam ver os acrobatas enlouquecidos pela liberdade pularem do trapézio sem rede da resistência. Entre os atletas estavam Babosa Lima sobrinho, meu rejuvenescido parceiro na postulação utópica de vice-presidente da República.

Foram anos de lutas, quando o MDB vislumbrou no horizonte a mínima chance de alcançar a Presidência e essa não passava por Ulysses, foi o primeiro a empunhar a bandeira que intitulou: “Rasgar o regime por dentro” e aceitou o desafio de coordenar a campanha do General Euler Bentes Monteiro como opção civil, cívica e civilista contra o General dos servis e servilistas.

Antevendo que o Brasil não chegaria fácil ao porto seguro da democracia, aproveitou a brecha que a ditadura deu, com a eleição dos Governadores de Estado e convocou o povo às ruas pelas “diretas já” e pela eleição de uma Assembleia Nacional Constituinte. Perdeu a batalha legislativa pelas “diretas já”, mas levou para casa, ou melhor, para as ruas, de onde ele nunca se afastou, o título abstrato de “Senhor Diretas”, para logo em seguida acumulá-lo com os de “Senhor Constituinte” e “Senhor Moralidade”.

O caminho para o porto seguro da democracia parecia fechado pelos parlamentares do amém, quem em memorável Sessão no Congresso Nacional, rejeitaram a “Emenda Dante de Oliveira”, que previa eleições diretas para Presidente da República. Se parecia fechado para alguns, não o parecia para Ulysses, caminheiro antigo pelas plagas da liberdade, conhecia também os atalhos. Foi o primeiro a relembrar a tese defendida em 78, a de “rasgar o regime por dentro”, desta vez a opção é atingir o ventre em que se geravam os presidentes ungidos pela cúpula militar, este ventre era o Colégio Eleitoral. Numa ensolarada manhã de abril, quando o sonho das diretas parecia derrotado, Ulysses pregou: “Vamos ao Colégio, como colegiais desordeiros, vamos ao Colégio para destruir o Colégio”. Mais uma vez a opção civil não passava por Ulysses Guimarães, e com o mesmo descortínio da vez anterior, coordenou a campanha cívico-popular que levou Tancredo Neves e José Sarney à Presidência da República. A morte o traiu e ao povo, entregando a função principal àquele que teria função assessória. Na sua fraqueza, inconstância e incredulidade diante do que o destino lhe reservou, Sarney encontrou um ombro forte a lhe amparar. Era Ulysses Guimarães.

Presidindo a Constituinte, transformou-se em símbolo de equilíbrio e da resistência, no referencial maior da luta político-parlamentar.

Escreveu a Constituição com os dedos de sua experiência, relatou-a sem ser o seu relator, liderou-a quando lhe faltou o líder.

A sua figura esguia percorreu quilômetros do edifício sede do Congresso Nacional, sua voz era ouvida no Plenário e nas Comissões Temáticas, quase que ao mesmo tempo, quer presidindo os trabalhos, quer conclamando seus pares ao cumprimento do dever, pois que como onipresente.

Ulysses escrevia pelas mãos dos outros, o que ele proclamou ser “o estatuto do homem e da liberdade”. Ao promulgar a Constituição, com suas sábias palavras, colocou o País a pensar: “Num País de trinta milhões e quatrocentos e um mil analfabetos, afrontosos vinte e cinco por cento da população, cabe advertir: A cidadania começa com o alfabeto”, num ponto importante de seu discurso de promulgação histórica da Constituição mostrou-se o liberal moderno, quando proclamou: “No Brasil, desde o Império, o Estado ultraja a geografia. Espantoso despautério: O Estado contra o País, quando o País é a geografia, a base física da Nação, portanto, do Estado”. Para logo adiante destacar: “Os Bandeirantes não ficaram arranhando o litoral, como caranguejos, na imagem pitoresca, mas exata, de Frei Vicente do Salvador. Cavalgaram os rios e marcharam para o oeste e para história, a conquista de um continente.

Na teoria política do Estado, no mesmo discurso de promulgação, Ulysses asseverou: “A Federação é a governabilidade dos Estados e dos municípios. O desgoverno, filho da penúria de recursos, acende a ira popular, que invade primeiro os paços municipais, arranca as grades dos palácios e acabará chegando à rampa do Palácio do Planalto”.

Terminada sua missão na Constituinte, experimentou como ninguém o gosto amargo da democracia: a derrota por votos. Não por falta de méritos. Méritos que ele acumulou para postular, ninguém nunca o negou. Faltaram-lhe os votos, votos chorados dois anos e alguns meses depois, votos que lhe foram negados pelo próprio partido do qual foi Pai e Mestre, votos que lhe foram tirados por “companheiros” que o traíram em sua mais sublime postulação, a de subir a rampa do Palácio do Planalto, eleito pelo voto direto, base da democracia por ele conquistada.

Nas eleições presidenciais tive a oportunidade de conviver com ele. Na condição de Presidente Nacional da Juventude do PMDB, visitei dezenas de Estados em sua companhia, e aqui em Goiás, realizamos inúmeros comícios e caminhadas (cerca de oitenta) em favor de seu nome. Aprendi ali, no meio da luta eleitoral, a admirá-lo, como liderança corajosa, destemida. Não lhe importava o resultado eleitoral, só o fato histórico de estar acontecendo as eleições presidenciais, feliz com o resultado que obtivera, apesar de os analistas que não o conheciam terem classificado como acachapante a sua derrota, Ulysses só tinha vitória a me contar, quando o fez afirmando:

“Afinal houve eleições e delas participei, não venci, mas não me considero vencido. Vencidos foram alguns, inclusive muitos que participaram e nada fizeram, nada absolutamente nada para que este fato eleitoral viesse acontecer. Eu sou o vencedor do fato, o de ter havido as eleições, os eleitos o são do ato, de ter ganho as eleições”. Estava ele também muito contente com o apoio recebido do amigo Henrique Santillo e o fato de ter sido o terceiro colocado em Goiás. Depois que deixei o PMDB, continuei a me encontrar com Ulysses, dele guardo lembranças que não desejo esquecer jamais, uma delas foi durante a convenção do PMDB, quando ele passou o cargo ao atual Presidente do partido, ocasião em que afirmou textualmente:

“Permitam que agora fale de mim.

Já fiz discursos com amor e com cólera. Com cólera, não com raiva. Em política, raiva, só fingida ou combinada.

Este discurso eu escrevi com o coração e o leio com os olhos úmidos.

Na política, mais difícil do que subir é descer. É descer não carregando o fardo podre e fétido da vergonha. Descer não desmoralizado pela covardia. Não descer com as mãos esvaziadas pela preguiça e pela impostura. Não descer esverdeado pelas cólicas de inveja dos que os emulam, nos sucedem ou nos superam. Não descer com a alma apodrecida pelo carcinoma do ressentimento.

Vou livre como o vento, transparente cantando como a fonte.

Desço.

Vou para a planície, mas não vou para casa. Vou morrer fardado, não de pijama.

Política se faz na rua ou com a rua.

Vou para a rua, porque o Governo desgoverna a rua”.

Neste mesmo discurso, batizado de “Oração do Adeus”, Ulysses prestava uma homenagem àquela que durante tantos anos foi seu escudo e seu exílio, sua confessora e sua inspiração, aquela que o destino os uniu na eternidade: Dona Mora. Referindo-se a ela, disse:

“Desta tribuna mando um beijo a Mora. Beijo de amor e gratidão.

Tantas vezes saí de casa, podendo não voltar. Muitos não voltaram. Não saía dividido entre e família e o ideal. Saía inteiro. Porque nunca vi lágrimas nos olhas, nem lamúrias ou apelos de prudência nos lábios de Mora. Repetidas vezes, quando chega a prudência, desaparece a coragem”.

Foi lição final do Mestre da minha geração e do homem do meu tempo. A Ulysses, as honras não são de Chefe de Estado, que são pequenas para ele, mas de chefe de um povo, que como Moisés o guiou sem medo e sem ódio e que, ao perdê-lo, perde o referencial de grande parte de sua história, que seria outra, com certeza muito pior para o povo, sem a participação corajosa e destemida de Ulysses Silveira Guimarães.

* Algumas pérolas de Ulysses:

1) “Sou caçador de nuvens. Já fui caçado por tempestades”.

2) “Velho sou, velhaco não”.

3) “Navegar é preciso, viver é não preciso” – parafraseando Fernando Pessoa.

4) “Ou mudamos ou seremos mudados”.

Marconi Perillo, à época deputado estadual, ex-presidente do PMDB Jovem Nacional e um dos coordenadores da campanha presidencial de Ulysses Guimarães em 1989

 

 

Tags

Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias