Um traço de esperança em meio à escuridão
Redação
Publicado em 3 de junho de 2015 às 02:55 | Atualizado há 10 anosEla corta as ruas da cidade de Goiânia levando esperança, amor, solidariedade e comida. Por cada noite que percorre uma pessoa a menos fica sem fome. Dentro e fora dela são várias as histórias. Histórias de superações pessoais, dramas, choros, arrependimentos, sofrimentos e outras tantas de destruições familiares.
Era domingo, 24 de maio 2015, eu ainda não a conhecia. Quando a vi pela primeira vez confesso que não senti nada. Pra mim era só um automóvel, fora de linha por sinal. Branca, redonda, esquisita, fora de moda, sem lado. Foi feita uma prece e ela ficou lá, quieta, esperando seu ofício. Quando terminamos a prece, foi feita a divisão das rotas das entregas de marmitas. Eu fui designado pra outra rota. Não tive como acompanhá-la naquele domingo.
Na quarta-feira, 27 de maio 2015, quando voltei, lá estava ela. Achei-a com cara de cansada, sofrida, lamentosa, acho que de tanto carregar peso e histórias de dores e perdas. Colocamos as marmitas, roupas, cobertores e teve pirulito também. Ao entrar dentro dela, confesso que algo diferente me acometeu. Senti um ambiente desconectado com o real, parecia que estava em outro plano, uma emoção sem explicação tomou conta do meu pensamento. Entraram mais outros companheiros de jornada naquela noite. Quando ligou o motor, uma emoção sem razão invadiu todo meu racional. Tentei segurar a emoção, mas as lágrimas verteram sem que eu conseguisse mais segurar. Não eram lágrimas de tristeza que saíam, mas de alegria por ter a oportunidade de estar ali dentro e poder, de alguma maneira, levar um pouco de auxílio aos que não têm nada.
Sua primeira parada foi nos guetos escuros do bairro São Francisco, onde prostitutas, travestis, usuários de drogas, homens e mulheres que têm suas vidas degradadas pelas mazelas e sofrimentos diversos a esperavam para receber um copo de suco, uma marmita, uma coberta, “uma roupa véia”. Ela para e não pergunta nada, simplesmente para e começa sua obrigação: levar esperança aos que necessitam. Ali estão homens e mulheres que perderam seu bem mais valioso, que é a dignidade. Mas ela não importa com isso e tenta diminuir essa ausência.
Saímos de lá e fomos para debaixo de uma ponte. Seu barulho já é conhecido. Quando estacionamos e demos um sinal, logo apareceu um homem magro, esquálido, sujo. Oferecemos o que tínhamos e puxei um breve papo com ele. Ele me disse que tinha dois dias que não comia nada e que se não fosse o “pessoal da Kombi, ele iria desmaiar de tanta dor no estômago”. Nunca senti “dor de fome”, mas a dor da fome dói e doeu em mim naquela hora. Entregamos o que tínhamos de entregar e fomos para outra parte da cidade. Paramos em vários outros lugares naquela noite e ela não reclamou. Parece que seus amigos mendigos, prostitutas, drogados, moradores de rua, famintos, ladrões, miseráveis, os marginalizados dão tanta força pra ela que a faz ser uma heroína das noites de fome e frio de Goiânia.
Dentro dela eu já não era mais eu e confesso que algo mudou em mim naquela noite. Queria entender o que estava acontecendo. Uma simbiose aconteceu entre os que estavam nela. Por vários momentos acreditei que éramos um só. Ela não me mostrou uma Goiânia dos cartões postais, mas me fez pensar mais nesta cidade. Fui levado por lugares escuros, sujos, mal cheirosos, repugnantes. Tenho certeza que ela estava me testando… eu tinha certeza. Começamos os trabalhos era por volta das 19h30 e terminamos às 23h40. Desci e entrei nela várias vezes naquela noite. Todas as vezes que eu descia e entrava não era o mesmo.
Meus problemas ficaram tão miúdos e sem razão a partir do meu primeiro dia de contato com ela que não tenho mais coragem de reclamar de qualquer coisa que vier a me acontecer. Não fui mais o mesmo. O responsável por ela existir tem nome, Tio Cleobaldo, o amigo dos miseráveis e abandonados das ruas de Goiânia.
(Marcio Lima é especialista em marketing político e sócio-proprietário da BM2 Comunicação)