Uma reflexão sobre os acordos MEC-Usaid
Diário da Manhã
Publicado em 7 de janeiro de 2016 às 22:04 | Atualizado há 9 anosUltimamente, a gente vem se desiludindo de ler. Não que o hábito da leitura tenha caído em desuso, mas porque desvirtuaram tanto nossa língua, que não se tem mais alento em ler um texto que nos atraia.
Lembro-me de que, mesmo socados naquele antigo norte de Goiás, sem um jornal para nos clarear as vistas, tínhamos o hábito saudável da boa leitura. Nos anos cinquenta, aportou em Dianópolis o padre arraiano João Magalhães, recém-saído do Seminário do Caraça, em Belo Horizonte, onde convivera com a elite da cultura da época, e nos levou o que havia de melhor para aprendermos. Lemos, numa biblioteca da Prefeitura, desde os clássicos mundiais, como “Eneida”, de Virgílio, “Ilíada e “Odisseia”, de Homero, “Jerusalém Libertada”, de Torquato Tasso, “A Divina Comédia”, de Dante, passando pela literatura portuguesa, com seus grandes representantes, desde Dom Dinis a Herculano e Garrett, pela alemã (com Goethe e Schiller), inglesa (com Shakespeare, Lord Byron e John Milton) persa (com Omar Kahyan), hindu (com o suave Rabindranath Tagore, sem me esquecer dos épicos poemas “Mahabárata” e “Ramáyana”). Enfim, o padre nos fez ler centenas de obras primorosas, escorados no ensino que ele nos propiciou, através do ensino do latim e até do grego.
Desde quando Cabral aportou com suas caravelas em Porto Seguro, nosso Brasil nunca teve autonomia: sempre foi um país sem vontade própria, uma terra de ninguém, cobiçada pelos mais espertos. Antes, mandavam os Estados Unidos, e agora, querem mandar Cuba, Venezuela e outras republiquetas sem expressão, com o beneplácito do nosso governo.
Pois bem, tínhamos uma educação estruturada, com o ensino do francês, inglês e latim, de sorte que o aluno saía do antigo Curso Ginasial com uma sólida base para enfrentar o Científico (para quem desejava cursar a área de Medicina, Engenharia, Arquitetura etc., e por isso direcionava seus estudos para a Matemática, Física e Química) ou o Clássico, que priorizava as disciplinas como línguas (latim, francês e inglês), para quem desejasse cursar Direito, Letras etc.
Em 1968, presidia a República o general Costa e Silva, cuja equipe negociou secretamente com os Estados Unidos uma reformulação no nosso ensino superior, pois a estrutura estava incomodando os ianques. Foram estabelecidos acordos entre o Ministério da Educação do Brasil, dirigido por Tarso Dutra, e a United States Agency for International Development (Usaid) para reformular o ensino brasileiro de acordo com padrões impostos pelos americanos. As discussões sobre a educação vinham desde 1961, e apesar da ampla discussão anterior, essas reformas foram implantadas pelo governo militar.
Primeiramente, o curso Primário, que tinha cinco anos, incluindo o terrível Admissão, fundiu-se ao Ginasial, que era de quatro anos e foram renomeados como Primeiro Grau, com oito anos de duração. Já o antigo Curso Científico foi fundido com o Curso Clássico, e passou a ser denominado Segundo Grau, com três anos de duração. O Curso Universitário passou a ser denominado Terceiro Grau, eliminando um ano de estudos, fazendo com que o Brasil tivesse apenas 11 níveis até chegar ao fim do Segundo Grau, enquanto países europeus e o Canadá possuem um mínimo de 12 níveis.
O Acordo impunha ao Brasil a contratação de assessoramento norte-americano e a obrigatoriedade do ensino da língua inglesa. Os técnicos oriundos dos Estados Unidos criaram a reforma da educação pública que atingiu todos os níveis de ensino. Na verdade, o acordo tinha como proposta inicial privatizar as escolas públicas, tendo também como objetivo uma profunda reforma no ensino brasileiro e a implantação do modelo norte americano em nossas universidades.
Matérias como História tiveram sua carga horária reduzida para que estudantes da época não tivessem seus olhos abertos em relação à ditadura. A Educação Moral e Cívica (EMC) tornou-se obrigatória no currículo escolar brasileiro a partir de 1969, juntamente com a disciplina de Organização Social e Política Brasileira (OSPB). A EMC e a OSPB substituíram a Filosofia e a Sociologia, para transmitir a ideologia do regime autoritário ao exaltar o nacionalismo e o civismo dos alunos e privilegiar o ensino de informações factuais em detrimento da reflexão e da análise. Sacaram o latim em todos os níveis, atrofiando o ensino de nossa língua, que ficou capenga, resultando nessas baboseiras que vemos por aí nos livros e na imprensa. Mas nos países europeus que falam línguas neolatinas (França, Espanha, Itália, Portugal, Romênia) continuam até hoje com o latim no seu currículo. Até na Alemanha o latim é obrigatório, pois o alemão, como o latim, tem declinações.
Como os líderes estudantis brasileiros discordassem da ingerência de um país estrangeiro nos assuntos educacionais de nosso país, houve ferrenha repressão aos diversos movimentos reivindicatórios, colocados na clandestinidade.
O resto todo mundo já sabe. Estamos perdidos em termos de educação. E não vão ser esses programinhas tapeativos e superficiais como o Enem e o Enade que vão consertar a situação, pois, além de não resolverem coisíssima nenhuma, ainda servem de caldo de cultura para essa corrupção que campeia sem dó nem piedade.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, escritor, jurista, historiador e advogado – [email protected])