Vale do Paranã: o versejar regional
Diário da Manhã
Publicado em 4 de novembro de 2015 às 23:51 | Atualizado há 9 anosTerritório de extensão das culturas baiana e nordestina, o leste goiano herdou também a tradição oral do versejar. Até os ditos populares vêm em forma de dísticos rimados: “Quem muito cochicha, / o rabo espicha. Vontade é muita / mas tem dor na junta. Se quiser, bedéu / se não quiser, quidibedéu.” E assim, para cada situação posta, há uma resposta em versos. Por exemplo, quando alguém oferece um café desacompanhado de quitute: “Café com isca, meu boi não pisca.” Quando se quer comer o último petisco oferecido, por exemplo, ao visitante: “O que é pouco não se regra, / come logo que sossega.” Ou quando se reclama de alguém beliscando a comida, geralmente vem a resposta: “Quem não belisca, não petisca.” Para não dar alguma guloseima a alguém, que pergunta “O que é isso?” Resposta: “Chouriço de porco mestiço.”
Nas rodas de conversas não há censura às brincadeiras. Prevalece a moral dos costumes, mas não há brincadeira julgada imoral. Dizer em versos é um procedimento comum na região, até como técnica mnemônica, como forma de ensinamento, por exemplo, para contar de 1 a 10: “Um – ovo de anum. Dois – galinha que pôs. Três – galinha pedrês. Quatro – ovo de pato. Cinco – galinha de pinto. Seis – ovo de indez. Sete – corta com canivete. Oito – café com biscoito. Nove – você resolve. Dez – ir à casa de seu Genés (io).” Outra técnica mnemônica é utilizada em dístico:
“Um, dois – feijão com arroz. Três, quatro – farinha no prato.” (E assim por diante).
Conversas rimadas constituem formas criativas de entretenimento, geralmente cultivadas entre adultos ou adolescentes, quando trocam versos em roda, fazendo, indiretamente declarações de amor, ou ironias e desabafos. Exemplos de lundus, trovas de caráter cômico: “Casinha de sapé / um pé de bambuá / O homem deu um tiro / na casinha de iaiá.” Ou então: “O pinto pinicou o veio / o véio pulou pra trás / As moça tão dizeno / que o véio num presta mais.”
A técnica compositiva
Como se sabe, a composição poética popular vem da tradição literária medieval que chegou até os dias atuais, ora em forma mais elaborada sob influência das composições eruditas dos menestréis, ora em forma mais espontânea e de livre invenção (improvisos dos jograis, ou poetas populares, que saíam cantando versos nas feiras, nas bodegas e nos círculos boêmios). Pode-se dizer que os cantadores de feiras do Nordeste representam hoje uma versão dos antigos jograis.
Destacam-se entre as composições poéticas medievais, as gestas (narrativas de feitos heróicos) e os romances e baladas (narrativas de casos lírico-amorosos), todas em versos cantados e acompanhados de instrumentos. Essas composições chegaram até nós via colonização portuguesa. No Brasil, os romances em versos cantados sobrevivem na forma da moda de viola ou do abc recitado. Composições essas constituídas de quadras, sextilhas, oitavas ou décimas, conforme sejam as estrofes (de 4, 6, 8 ou 10 versos). Na linguagem popular, estrofes são chamadas versos (jogar versos) e rimas são atrovos (versos bem atrovados). Na moda de viola, acrescenta-se o recortado, em tom mais alto (ligeiro e alegre), enquanto a moda é geralmente melancólica.
Quanto às sílabas métricas, são mais comuns os versos em redondilha menor (cinco sílabas) e versos em redondilha maior (sete sílabas). Um exemplo ilustrativo é a conhecida “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, de tal forma popularizada que entrou em processo de folclorização, por traduzir bem o ritmo expressivo da alma brasileira: “Minha terra tem palmeiras / onde canta o sabiá. / As aves que aqui gorjeiam / não gorjeiam como lá.” Geralmente os poemas ou cantigas que mais se popularizam são aqueles medidos em sete sílabas, a exemplo da canção “A banda”, de Chico Buarque de Holanda: “Estava à toa na vida / o meu amor me chamou / pra ver a vida passar / falando coisas de amor.”
Quanto ao processo compositivo, na poesia de cordel nordestina é freqüente se lançar um mote (tema em dois versos, dístico) que deverá ser seguido da glosa (desenvolvimento do tema), em estrofes chamadas sextas, oitavas ou décimas, conforme a quantidade de versos. Exemplo de glosa do famoso cordelista Belarmino de França (quando já usava bengala), em cima de um mote: “Oitenta anos de idade / não é boa brincadeira.” Glosa (em décima, dez versos): “Andei a primeira vez / de quatro pés, e, depois, / prossegui andando em dois. / Hoje, só ando com três. / Mas, Deus assim não me fez, / nem nasci dessa maneira. / Esta perna de madeira, / uso por necessidade. / Oitenta anos de idade, / não é boa brincadeira.”
Certa vez, compareceu a um programa de televisão um repentista nordestino que foi desafiado a desenvolver um mote com o seguinte dístico: “Dener é homem de luxo, / o maior dos costureiros.” Ele pegou a deixa (o mote) e desenvolveu a glosa na seguinte oitava (estrofe de oito versos): “De norte a sul se conhece / o seu nome no jornal. / É um homem que parece / já ter fama mundial / por vestir os brasileiros, / de baiano até gaúcho: / Dener é homem de luxo, / o maior dos costureiros.”
A tradição do ABC
Enquanto as mencionadas gestas medievais se prestavam a narrar feitos heróicos, o ABC, bem como a moda de viola atuais, se ocupam de temas do cotidiano, geralmente caricaturando pessoas e fatos em situações jocosas. Pode-se dizer que muitas crônicas do cotidiano se encontram na forma simples do ABC, em que se encaixam na ordem alfabética os nomes das personagens que representam fatos e circunstâncias de um determinado tempo e lugar. A composição na forma de ABC (seguindo a ordem das letras do alfabeto, inclusive uma letra não existente, o til), é o tipo mais comum de cordel regional (leste goiano, fronteira com a Bahia). Nessa composição em versos nunca faltam o toque de humor ou ironia. Deixo de citar um trecho da literatura oral, por exemplo, do ABC das vogais, cujo tema é “bicho danado é mulher”, para não criar problema com o sexo frágil.
(Emílio Vieira, professor universitário, advogado e escritor, membro da Academia Goiana de Letras, da União Brasileira de Escritores de Goiás e da Associação Goiana de Imprensa – E-mail: [email protected])