- Festival 'Pirenópolis.Doc' será aberto hoje, 19h, no Cine Pirineus
- 'Retratos de Identificação' é o filme-documentário de abertura
- Filme conta a história da morte de Maria Auxiliadora Lara Barcellos
- Produção de Anita Leandro registra mais 3 casos de violações de direitos
Renato Dias
Estudante de Medicina, na Alemanha, Maria Auxiliadora Lara Barcellos acordou de manhã. Ela fez barulho para que Reinaldo Guarany levantasse e tomasse café com ela. Depois, despediu-se com um estranho adeus. Para, em seguida, suicidar-se no metrô. Era o frio de 1976. Exilada política no velho mundo, havia sofrido as torturas da ditadura civil e militar no Brasil, após a sua prisão, em 21 de novembro de 1969. Trocada no comboio dos 70, radicou-se no Chile, do médico marxista Salvador Allende, que caiu em 1973. Por último, refugiou-se na Europa. Dora, como a chamava seu marido, é o segundo caso de suicídio em virtude das sequelas de torturas dos anos de chumbo. O primeiro é o do dominicano Frei Tito de Alencar Lima, na França.
Triste, essa é uma das histórias contadas no belo 'Retratos de Identificação', sob a direção de Anita Leandro, professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ]. O documentário será exibido nesta quinta-feira, na abertura do festival Pirenópolis.Doc, no Cine Pirineus. Ele é promovido pela Violeta Filmes e pela Maricota Produções. O evento terá a duração de quatro dias. Para a Mostra Competitiva foram escolhidos 27 filmes produzidos em 11 estados da federação. Os organizadores revelam que 486 produções teriam sido inscritas. Preto no branco: o Estado de Goiás teve nove documentários selecionados. Já São Paulo, apenas quatro filmes. Rio de Janeiro, três.
'Retratos de Identificação' desmonta a farsa montada pela repressão política e militar em 1969 para encobrir a morte, sob torturas, do então estudante de Medicina, Chael Charles Schreier. O enragé era membro da Vanguarda Armada Revolucionária - Palmares, a VAR-Palmares. Os três principais dirigentes do comando nacional da organização que adotou a estratégia de luta armada contra o regime civil e militar que havia deposto o presidente da República, João Belchior Goulart, foram Antônio Roberto Espinosa, Carlos Franklin da Paixão Araújo e uma estudante de Economia que usava óculos de fundo de garrafa chamada de Dilma Vana Rousseff Linhares, apelidada de "Mônica", por Carlos Lamarca, o capitão da guerrilha.
Fotografias encontradas pela diretora do documentário mostram que o militar Celso Lauria mentiu em inquérito. Chael Charles chegou em bom aspecto físico, como atestam as fotografias de sua prisão, ás dependências do Exército. Trocando em miúdos: não morrera em tiroteio em confronto com os agentes do Estado. A queda, no Rio de Janeiro, iniciada com a prisão dos três, deflagrou o processo de desintegração da VAR-Palmares. Em janeiro, Dilma Rousseff acabou presa, em São Paulo. Meses depois, Carlos Franklin da Paixão Araújo caiu. Em Goiás, São Paulo e Minas Gerais a organização perdera quadros estratégicos. Anos de chumbo da ditadura civil e militar. A guerra contra os donos do poder pós-1964 já estava perdida.
Em um estilo narrativo seco e direto, Anita Leandro traz depoimento de Antônio Roberto Espinosa. Imagem encontrada nos arquivos do extinto Departamento de Ordem Política e Social do Rio de Janeiro [Dops-RJ] mostra o guerrilheiro com a cabeça e o pescoço ensanguentados após a barbárie da tortura nas dependências do Estado, que, em tese, deveria garantir a sua integridade física. Longe disso. A política institucionalizada do Estado foi a universalização da tortura para liquidar com a dissidência política. Nem o ex-deputado federal do PTB e empresário Rubens Beirodt Paiva conseguiu escapar dos homens de farda. Preso em 20 de janeiro de 1971, morreu sob torturas. O seu corpo nunca foi entregue à sua família.
Autor do celebrado livro "A Fuga", Reinaldo Guarany era um soldado da Ação Libertadora Nacional. ALN, dissidência à esquerda do Partidão. A organização foi fundada pelo ex-deputa-do federal comunista Carlos Marighella, classificado em 1969, pela Revista Veja, como o "inimigo público número um" da ditadura civil e militar. Preso no Rio de Janeiro, amargou a tortura, mas acabou libertado, com o seu indefectível bigode, na troca dos 70. No Chile, conheceu Maria Auxiliadora Lara Barcellos, com quem viveu um romance de quase cinco anos, até o seu suicídio. Depois do exílio na Alemanha e Suécia, voltou ao Brasil. Com a Lei de Anistia sancionada pelo último general-presidente, João Baptista de Oliveira Figueiredo. É focado por Anita Leandro.
SAIBA MAIS
Retratos de Identificação
Documentário, Brasil, 2014, cor, 71 min
Realização: Anita Leandro / UFRJ / Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (Projeto Marcas da Memória)
Direção: Anita Leandro
Imagem: Marcelo Brito
Som Direto: Alexandre Nascimento
Edição e Tratamento das Fotografias: Marta Leandro
Montagem: Anita Leandro
Corte final: Joana Collier e Isabel Castro
Videografismo: Guilherme Hoffmann
Criação Sonora e Mixagem: Edson Secco
Produção: Anita Leandro
Produção de Finalização: Amanda Moleta e Pojó Filmes
Assistente de Produção: Maíra Bosi
Finalização: Link Digital
Exibição: 6 de agosto de 2015, em Pirenópolis [GO]
Avaliação: Excelente
Uma noite que durou 21 anos
Em 31 de março de 1964, fardados e civis derrubam o então presidente da República, João Belchior Goulart, e implantam uma ditadura. À sombra da guerra fria, a estratégia era desagregar o bloco-histórico populista e levar os interesses multinacionais e associados à direção do Estado.
As tropas de Olímpio Mourão Filho desceram a serra sem um só tiro ou protesto. Jango teria voado com o general Assis Brasil, que teria um dispositivo militar que não apareceu, à Fazenda Rancho Grande, em São Borja. Depois, com Maria Thereza e filhos, tomou um C-47 e aterrissou no exílio: Uruguai.
O primeiro general-presidente a entrar em cena foi Humberto Castello Branco. Ele queria um ato institucional que durasse apenas três meses. "Assinou três". Queria que as cassações se limitassem a uma ou duas dezenas: cassou quinhentas pessoas e demitiu 2 mil.
O seu governo durou 32 meses, 23 dos quais sob a vigência de 37 atos complementares. O general Humberto Castello Branco foi o cérebro do golpe de Estado civil e militar de 1964. Ele era o líder da Sorbonne militar, composta, por exemplo, de Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva.
Para o brasilianista Thomas Skidmore, o movimento civil e militar do ano de 1964 ocorreu com dez anos de atraso e nunca atingiu o seu objetivo: desmantelar a estrutura estatal e sindical corporativista montada por Getúlio Vargas, morto em agosto do turbulento 1954.
"O golpe ia ser dado em 1954, mas falhou por causa do suicídio de Getúlio Vargas", observa o analista. Não foi uma quartelada, mas uma ação de classe traçada tática e estrategicamente pelas elites orgânicas do capital transnacional, pontuou o uruguaio René Armand Dreiffus.
- Ipes, Ibad e ESG consideravam o Estado como instrumento de um novo arranjo político e de um "novo modelo de acumulação".
História: as articulações contra João Goulart começaram antes de sua posse, em agosto e setembro de 1961. Mais: se intensificaram a partir do plebiscito que decretou a volta do presidencialismo, em janeiro de 1963, e tomaram as ruas após o anúncio das reformas de base, em 1964.
Sucessor de Humberto Castello Branco, Arthur da Costa e Silva decreta o Ato Institucional nº 5 em 13 de dezembro de 1968. Vice, o civil Pedro Aleixo foi impedido de assumir o Palácio do Planalto. Depois de um breve exercício da Junta Militar, Emílio Garrastazu Médici chegou ao poder.
Em 1977, Ernesto Geisel, que havia executado a partir de 1974 a distensão lenta, gradual e segura, baixa o Pacote de Abril. João Baptista de Oliveira Figueiredo é abençoado pela caserna no ano de 1978 e o Congresso Nacional aprova a Lei da Anistia, em agosto do ano de 1979.
Os exilados retornaram ao Brasil e os presos políticos deixam os cárceres. A ditadura acabou em 15 de março de 1985. Já Daniel Aarão Reis diz que a ditadura acaba, de fato, em 1979. Para ele, de 1979 a 1988 há, no Brasil, um período de transição entre um Estado de Direito Autoritário até o Democrático,de 1988
A democracia no Brasil, depois dos anos de ditadura civil e militar, só se consolida com a remoção do legado constitucional autoritário e a promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988, sob a Nova República, cujo presidente da República, era José Ribamar Sarney, ex-Arena e ex-PDS. Ironias da história.