A principal pauta do Governo Federal tem sido propor reformas. A da previdência foi a quarta a ocorrer nos últimos seis mandatos, de Fernando Henrique (PSDB) a Lula (PT), passando por Dilma Roussef (PT), e agora Jair Bolsonaro. A reforma da vez, segundo os técnicos da gestão atual, é a administrativa, que visa incluir todo o contorno do serviço público. Os primeiros ensaios indicaram que a reforma seria fatiada, atingindo em cheio, principalmente, os servidores administrativos gerais, professores e carreiras não jurídicas. Mas o debate ainda está em formação. Exatamente para impactar nestas discussões, vários agentes têm surgido para dialogar sobre a reforma. Dependendo da reforma que sair do papel, o serviço público – e consequentemente toda a formação do Estado – será impactado. A promotora de Justiça Villis Marra, da 78ª Promotoria de Justiça do Estado de Goiás, uma das mais atuantes em Goiás, com notável presença na fiscalização da aplicação da lei, não teme o debate e defende o serviço público - que é, afinal, uma das razões do Estado existir. Ela tem sido uma das poucas vozes com coragem de mostrar que o caminho a ser tomado pelo país pode prejudicar ainda mais a relação do cidadão com o Estado.
Villis é crítica do atual sistema e enxerga a necessidade de mudanças, como a aceitação de soluções pertinentes às organizações sociais - desde que sejam efetivamente fiscalizadas. Mas enxerga também interesses políticos por trás do enfraquecimento do serviço público. Para Villis, é preciso defender o serviço público, o servidor (nem sempre o culpado pela ineficiência) e coibir as irregularidades no âmbito dos cargos públicos, cada vez mais comuns em ambientes que evitam concursos e celebram contratos precários ou contratações políticas. Em entrevista ao DM, ela demonstra a necessidade de melhorar o serviço público, mas joga luz em uma tentativa cada vez mais clara de desconstruir as carreiras públicas.
DM- Existe uma grande expectativa quanto a reforma administrativa proposta pelo governo Bolsonaro e que valerá para todo país. A senhora acredita que mudará algo para melhor?
Villis Marra - A Reforma Administrativa é a bola da vez, o que significa que faz-se muito barulho, no sentido de que ela resolverá os problemas do Brasil no âmbito da Administração Pública. Todos concordamos que existem alguns excessos que devem ser corrigidos, mas com as medidas certas, e não com uma reforma que visa suprimir direitos de servidores públicos, sob o pretexto de acabar com “regalias”.
Ataca-se o Judiciário e o Ministério Público, mas não se fala, pelo menos não ouvi até agora, nenhuma palavra no sentido de cortar verbas de gabinete, reduzir fundo partidário, etc.
Nesse sentido, vislumbro que a reforma não atenderá às reais necessidades de mudança que aprimorem o serviço público. Pelo contrário, o cenário indica que haverá um prejuízo muito grande para o serviço público no tocante à qualidade e eficiência, e que não só o servidor público perderá, mas o serviço público como um todo será o mais prejudicado.
DM- Fala-se muito em eficiência de servidores, mas a tendência é que a reforma faça o serviço público ainda mais dependente da política, não?
Ao que parece, essa reforma tem como principal objetivo acabar com o serviço público. Sendo que o servidor público é quem será mais atingido, inclusive as maiores consequências que advirão serão para os servidores que prestam os serviços essenciais, como os professores, médicos, enfermeiros, assistentes sociais e policiais, ou seja, para aqueles que fazem a máquina administrativa funcionar.
"Não são raras as vezes que o servidor público, no cumprimento de suas funções, precisa tomar decisões que contrariam os poderosos de plantão" - Villis Marra, promotora de Justiça
Uma das propostas é a que poderá acabar com a estabilidade do servidor público. É extremamente preocupante, porquanto as garantias e prerrogativas visam assegurar a independência e isenção do servidor no exercício do cargo público. Ou seja, são garantias inerentes aos cargos e funções e não do servidor.
Não são raras as vezes que o servidor público, no cumprimento de suas funções, precisa tomar decisões que contrariam os poderosos de plantão. E nesse ponto que a reforma busca fragilizar o servidor, pois trará a insegurança de que, se não cumprir essa ordem do “superior” ou do detentor do poder, poderá perder o seu cargo. Assim, haverá grande prejuízo ao servidor público.
DM - Nas últimas décadas, por outro lado, o concurso público não se tornou um mercado e segmento incompatível com a realidade do Estado? Com muitos cursinhos e poucas vagas?
Hoje, o serviço público ainda é muito valorizado, em razão da estabilidade e das garantias que advém dos cargos públicos efetivos, garantias essas que foram estabelecidas pela Constituição Federal de 1988 e que visam dar condições ao servidor público de desempenharem um trabalho de qualidade e eficiência.
As garantias e prerrogativas são inerentes aos cargos e funções, e não ao servidor público. E como a seleção para esses cargos é muito concorrida e exigem conhecimentos técnicos variados, o mercado de cursos preparatórios tem se expandido.
Infelizmente, os concursos públicos têm se tornado cada vez mais escassos, vez que os gestores têm procurado outras formas de gerir a Administração Pública com cargos em comissão ou temporários.
DM - Quantos concursos estão hoje para serem realizados em Goiás e nas principais cidades do Estado? Os concursados aprovados podem perder o direito da posse? Não existe lei para coibir a demora no chamamento?
Não tenho número exato de concursos públicos que deveriam ser realizados no Estado de Goiás ou nas principais cidades, mas posso informar que são vários, como por exemplo: de agente de segurança penitenciário, policial militar, professores, dentre outros.
O concurso público realizado dentro das regras estabelecidas no edital e devidamente homologado tem validade de 02 (dois) anos, podendo ser prorrogado por mais 02 (dois) anos. O direito a posse é garantido dentro do prazo de validade do concurso e em obediência à ordem de classificação. A jurisprudência é no sentido de que se houver servidor comissionado ocupando a vaga de candidato aprovado em concurso público, a expectativa de nomeação convalida-se em direito à nomeação.
A lei do concurso é no sentido de que a nomeação deve ocorrer em 02 (dois) anos.
O Ministério Público tem exigido cláusula nos Termos de Ajustamento de Conduta -TAC, firmados com o Poder Público de que, no prazo máximo de 60 (sessenta) dias da homologação do concurso, deverão ser convocados 30% (trinta por cento) dos candidatos. Com isso, temos conseguido agilizar um pouco as nomeações. Porém, a realidade é que: luta-se para realizar o concurso público e, depois de realizado, ainda temos que lutar pela nomeação dos candidatos.
Infelizmente, os gestores públicos têm dificuldade de cumprir o art. 37, II da Constituição Federal que estabelece a regra do concurso público. As alegações são sempre as mesmas, de que a Administração Pública se encontra em crise financeira, mas ao reverso, contratações de servidores comissionados continuam acontecendo.
DM - Fala-se que o Judiciário tem remunerações muito altas. Até que ponto é verdade e o que deve ser feito?
O Judiciário e o Ministério público têm remunerações estabelecidas pela Constituição Federal. O que tem ocorrido é que as efetivações de direitos são constantemente rotuladas de salários por quem tem interesse em amesquinhar as carreiras públicas. Se existem excessos, eles devem ser coibidos, mas na forma correta e, para isso, existem conselhos como CNJ e CNMP. Tudo o que é recebido tem lei autorizando ou garantindo, ou seja, é direito. E direito estabelecido em Lei deve ser cumprido. Se não for adequado ou conveniente, revoga-se a lei. Ademais, quem faz as leis não são os juízes e/ou promotores.
Na verdade, existe uma campanha que visa desmantelar as carreiras da magistratura e do Ministério Público, na medida em que se tenta confundir o salário com outras verbas decorrentes de direitos. Sempre que atendo uma pessoa, falo para ela que se tem um direito, deve lutar para tê-lo atendido.
"Nos últimos anos o Ministério Público, através de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), conseguiu que a Câmara Municipal realizasse dois concursos públicos, um dos quais, aguarda a convocação dos candidatos aprovados" - Villis Marra, promotora de Justiça
DM - Nos EUA, existe um misto de contratações e eleições para serviços públicos. Esse modelo serviria para o Brasil?
Alguns cargos públicos, no Brasil, são providos por concurso público, cargos estes que exigem qualificação apurada e uma idoneidade que não paire dúvidas. Esses cargos têm exigências estabelecidas na Constituição Federal, como, por exemplo, Juiz e Promotor de Justiça. Nos Estados Unidos, esses cargos são preenchidos com eleição. Não vislumbro que o processo de escolha para esses cargos eletivos possa melhorar o serviço. Aliás, pelo contrário, com a eleição poderia haver escolha de profissional que, por ventura, não atenderia a exigência basilar do cargo que é atestada pelo concurso público, qual seja: a da qualificação.
DM - Quando se reclama do serviço público, geralmente a reclamação se refere a falta de agilidade na prestação de serviço público. Não é contrassenso querer reduzir o tamanho do Estado, então?
Ataca-se o serviço público sob o argumento de que é demorado e ineficiente, mas esquece-se de que muitos serviços públicos são de qualidade e de agilidade, mas prefere-se buscar casos em que houve demora ou outra causa que levou à procrastinação. É verdade que, no Brasil, existe excesso de prazos, a burocracia ainda é muito grande e, consequentemente, causa de ineficiência. Essas questões devem ser corrigidas, pois a administração pública tem como principal basilar a eficiência, transparência e moralidade. Existem as ouvidorias e corregedorias que estão aptas a receber denúncias, às quais são encaminhadas aos responsáveis para que as corrijam.
DM - Após longo período, o que se constata sobre o uso das OSs? Elas são melhores que o serviço público do Estado?
Acerca da utilização do serviço das OSS – Organizações Sociais na Administração Pública tem-se que lembrar que as organizações sociais não têm fins lucrativos. A ideia parece boa, mas ainda existe uma grande dificuldade no tocante à fiscalização. É um serviço que, se aprimorado, pode surtir os efeitos desejados. Atualmente, o que se tem notícia é de que muitas denúncias de irregularidades envolvendo as OSs não só no âmbito do Estado de Goiás, mas em outros Estados do Brasil. A terceirização dos serviços públicos deve ser uma opção do gestor que, se fizer a opção, tem de criar mecanismos eficientes de fiscalização.
DM - Como tem sido a atuação do Ministério Público para coibir as irregularidades no âmbito dos cargos públicos?
Nos últimos anos o Ministério Público, através de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), conseguiu que a Câmara Municipal realizasse 02 (dois) concursos públicos, um dos quais, aguarda a convocação dos candidatos aprovados.
No âmbito da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás, o Ministério Público entabulou Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), visando a realização de concurso público, os quais foram cumpridos, mas o último ainda aguarda a convocação e nomeação dos candidatos.
No concurso público para provimento dos cargos de Agentes de Segurança Prisional realizado em 2014, o edital previa o montante de 305 (trezentos e cinco) vagas. Foi proposta Ação Civil Pública através da 78ª Promotoria de Justiça, para que fosse ampliado o quantitativo de vagas para 1.930 (mil novecentos e trinta), o que foi acolhido pelo judiciário, oportunidade em que a ação civil pública proposta foi julgada procedente.
Em 2010, o Ministério Público executou um Termo de Ajustamento de Conduta firmado com a Câmara Municipal e, após os trâmites de praxe o judiciário determinou a convocação de mais 40 candidatos remanescentes.
É necessário que os gestores tenham consciência da importância de cumprir a Constituição Federal, que estabelece a regra do concurso público, cujo objetivo é um serviço com qualidade, eficiência e agilidade.
É uma atuação salutar, que busca dirimir as demandas de forma resolutiva e preventiva, mas sempre em defesa da legalidade e, consequentemente, do serviço público.