O Supremo Tribunal Federal (STF) começa a julgar hoje a constitucionalidade do orçamento secreto, instrumento usado pelo governo para obter apoio político e montar uma base de sustentação no Congresso. Os ministros da Corte têm nas mãos um conjunto de ações que pode derrubar o pagamento bilionário de emendas parlamentares, sem critérios definidos para a aplicação dos recursos. Nos moldes atuais, a prática foi inaugurada pelo presidente Jair Bolsonaro.
No Congresso, líderes do Centrão montaram uma operação de emergência para salvar o orçamento secreto e uma minuta de projeto de resolução foi preparada para tentar convencer ministros do STF a aceitar a manutenção desse mecanismo sob novas regras. Na tentativa de evitar que a prática seja derrubada pela Corte, a proposta distribui os recursos entre bancadas e parlamentares proporcionalmente ao tamanho dos partidos na Câmara e no Senado. Além disso, carimba a metade das verbas para saúde e assistência social.
Revelado pelo Estadão em uma série de reportagens, a partir de maio do ano passado, o orçamento secreto consiste na liberação de emendas para atender deputados e senadores em troca de respaldo ao governo no Legislativo. Sem equidade entre parlamentares, o repasse supera casos de desvio do dinheiro federal, como o dos Anões do Orçamento (1994) e a Máfia das Ambulâncias (2006).
Desde 2020, as emendas desse tipo somaram R$ 53,5 bilhões. Já o projeto de Orçamento para 2023 reserva a elas R$ 19,4 bilhões. Nos últimos anos, essa modalidade bancou a compra superfaturada de tratores, a licitação de ônibus escolares acima do preço, a construção de "escolas fake", deixando esqueletos de obras inacabadas, e a distribuição de caminhões de lixo fora dos padrões e sem planejamento, em cidades pequenas, como mostrou o Estadão. Os escândalos já provocaram três levas de prisões neste ano, no Maranhão e em Alagoas.
O repasse de verbas ocorre sem que os nomes dos verdadeiros padrinhos sejam revelados. Além disso, não há qualquer critério de distribuição entre parlamentares e regiões. Na prática, a liberação é feita de forma desigual entre congressistas e não atende às exigências da Constituição para o orçamento público, como transparência, moralidade e redução das desigualdades regionais.
O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, prometeu acabar com o orçamento secreto durante a campanha. Ele chegou a chamar a prática de "excrescência" e disse que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), agia como se fosse o "imperador do Japão". Líder do Centrão, Lira é hoje o principal operador do orçamento secreto. Não demorou muito para Lula dar um passo atrás.
O julgamento que começa hoje no Supremo tem desfecho imprevisível. O Estadão apurou que a presidente do STF, Rosa Weber - relatora das ações sobre o assunto - vai considerar inconstitucional a falta de transparência das emendas. Há consenso entre os ministros da Corte para acabar com esse sigilo, mas a discussão é se a divisão desigual dos recursos do Orçamento entre os parlamentares fere a Constituição.
Integrantes da equipe de transição avaliam que o Supremo vai derrubar essa prática. Políticos disseram a Lula, porém, que uma decisão assim tornará o clima no Congresso desfavorável a ele. O plano B dos parlamentares é usar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, apresentada pelo presidente eleito para aumentar as despesas em 2023, para incluir esse mecanismo na Carta.
O Centrão ameaça tornar a liberação impositiva, obrigando o governo a pagar os recursos sem cortes, como acontece hoje com as emendas individuais e de bancada. Lira e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), são candidatos à reeleição, em fevereiro de 2023, e as articulações dos dois contam com a liberação do orçamento secreto.
ACHADO
Se o Supremo derrubar (o orçamento secreto), para o Lula é um achado", disse ao Estadão o relator do Orçamento de 2023, senador Marcelo Castro (MDB-PI). "Como eu não vou mais poder fazer emendas de relator, se o Supremo proibir, vou utilizar esse valor em algum lugar e, muito provavelmente, será em emenda de comissão", completou ele, ao revelar uma das estratégias para manter os valores.
Juristas apontam várias inconstitucionalidades no orçamento secreto: falta de transparência, afronta ao princípio da moralidade pública, ausência de planejamento e alinhamento com programas estratégicos nacionais, aumento de desigualdades regionais, corte de despesas obrigatórias para bancar as emendas e ilegalidade na contratação de obras, além de desvios constatados na ponta.
"O Centrão ocupou um espaço no Orçamento com uma força tão bruta quanto uma barragem que rachou. Essa água escoada não volta", afirmou a procuradora Élida Graziane, do Ministério Público de Contas de São Paulo. "O ideal é declarar a inconstitucionalidade e devolver a atribuição de alocação de despesas ao Executivo, de forma planejada, no território nacional."
Se não declarar a prática inconstitucional, o Supremo pode dar uma decisão que mantenha as emendas, exigindo transparência e critérios para sua distribuição. O risco, porém, é o governo e o Congresso driblarem a decisão, como ocorreu no ano passado. Em 2021, a ministra Rosa Weber chegou a suspender a liberação das emendas, mas autorizou os pagamentos após o compromisso da cúpula do Congresso de anunciar quem estava destinando os recursos. Mas nem todos os padrinhos políticos foram divulgados.
Para o jurista Wallace Corbo, professor na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas Rio, o Supremo precisa impor regras de transparência e punições para suspender os pagamentos, caso a decisão não seja respeitada após o julgamento. "Não basta latir e mostrar os dentes. Tem de morder. Hoje, só o Supremo derruba o orçamento secreto", disse.
VISTA
Existe, ainda, a possibilidade de um ministro do STF pedir vista (mais tempo para análise) durante o julgamento, adiando a decisão final. Caso isso ocorra, deputados e senadores ficariam liberados para manter as emendas intactas no Orçamento de 2022 e articular a aprovação dos recursos em uma PEC até o fim deste ano. Outra tentativa em curso é convencer os ministros do Supremo a aceitar o modelo, sob o argumento de que serão estabelecidas novas regras de transparência e equilíbrio na distribuição da verba.
"O Supremo tem que acabar com o orçamento secreto na raiz, porque a raiz nada tem a ver com a necessidade de políticas públicas e do respeito ao planejamento do governo federal", afirmou Alessandra Cardoso, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Ela participou da elaboração de uma petição online pelo fim do orçamento secreto. O documento foi entregue ao STF com 200 mil assinaturas.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.