Por: Ariana Lobo
O projeto “Farmácia viva” estuda o uso medicinal de plantas e desenvolve remédios que são distribuídos gratuitamente na rede do SUS. Os remédios produzidos nas farmácias vivas não podem ser comercializados, sendo o objetivo principal do projeto (que tem características de ONG) o atendimento gratuito à população carente.
De acordo com o Decreto nº 5.813/2006 as farmácias vivas devem “garantir à população brasileira o acesso seguro e o uso racional de plantas medicinais e fitoterápicos, promovendo o uso sustentável da biodiversidade, o desenvolvimento da cadeia produtiva e da indústria nacional”.
O que muita gente não sabe é que Goiás possui uma farmácia viva, localizado na zona rural do município de Diorama (cerca de 60 km de Iporá), que já atendeu sete municípios com remédios gratuitos, sendo eles: Piranhas, Aragarças, Jussara, Montes Claros, Diorama, Iporá e Arenópolis. O projeto que propiciou o atendimento foi financiado pelo Ministério do Meio Ambiente com o recurso da biodiversidade e durou de 2008 à 2010.
A Farmácia Viva de Diorama é gerida pelo Centro de Tecnologia Agroecológica de Pequenos Agricultores (Agrotec), que possui estrutura para a produção das plantas, cultivo, secagem, extração de óleos e produção dos fitoterápicos.
A Agrotec conta com maquinário moderno e o laboratório está preparado para fazer todas as etapas de produção dos medicamentos fitoterápicos. Desde o cultivo da planta, a extração do óleo e a formulação do fitoterápico, até o envase, a rotulagem e envio pra fora.
O problema
O problema da Farmácia Viva de Goiás é que ela atualmente não tem permissão para produzir medicamentos fitoterápicos por não se adequar ao regulamento de boas práticas determinado pela RDC 18.
A RDC18, publicada em abril de 2013, determina sobre as boas práticas de processamento e armazenamento de plantas medicinais, preparação e dispensação de produtos magistrais e oficinais à base de plantas medicinais nas farmácias vivas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
De acordo com a resolução, dentre outros problemas estruturais apresentados pelo laboratório da Agrotec, o fluxo de produção está cruzado (isso significa que a matéria limpa entra pelo mesmo lugar que a matéria suja sai). Por causa desse cruzamento a Anvisa não permite que o produto seja comercializado.
Zenaide Pereira de Castro Estrela, tesoureira do laboratório, em entrevista ao DM conta que além do fluxo cruzado a divisão interna do laboratório está inadequada de acordo com a RDC 18. Ela explica: “nosso laboratório é dividido com divisórias de escritório. E isso é inapropriado para as delimitações da Anvisa. Não existe hoje nenhum laboratório que mexe com medicamentos, alimentos ou qualquer coisa que seja para consumo humano que seja dividido com divisórias comuns. Precisamos tirar todas as divisórias lá de dentro e construir paredes impermeáveis. Além disso será preciso fazer um tratamento na madeira pra não dar insetos, pois o laboratório fica dentro da mata, é preciso um controle de pragas muito rigoroso”.
Zenaide explica que quando o laboratório foi construído, ele atendia as normativas da Vigilância Sanitária, e declara: “só que elas mudaram, e agora temos que adequar”.
“Além disso, para produzir nós precisamos contratar funcionários. Só que não temos verba, pois os medicamentos que produzíamos eram disponibilizados gratuitamente para a população. E não existe um fundo do governo voltado especificamente para as farmácias vivas”, explica. Inadequações existem e devem sim ser corrigidas, mas Zenaide declara: “O problema é que como nosso trabalho não visa o lucro, nós não temos de onde tirar o dinheiro para adequar nosso laboratório às normas da Anvisa”.
O problema maior, entretanto, é que enquanto esperam aparecer uma verba para a reforma do laboratório, todo o maquinário e o laboratório estão em estado de abandono, sendo que poderiam estar atendendo a população carente dos municípios nos arredores de Diorama. Acaba que a população é que está saindo mais prejudicada.
Regras questionadas
Após a publicação da RDC 18, em abril de 2013, a polêmica no meio das Farmácias Vivas se instaurou, pois as regras da resolução foram amplamente questionadas.
Polliana Garcia, especialista em fitoterapia e farmacêutica do Arranjo Produtivo Local (APL) de fitoterápicos do laboratório da Agrotec, em entrevista para o DM, afirma que grupos de fitoteraía do país inteiro questionam pontos da RDC 18, pois “esses pontos deixam a desejar no sentido de que as exigências vão além da necessidade real de um sistema de produção à base de plantas medicinais. Por isso, o próprio Conselho Federal de Farmácia está estudando uma possibilidade de pedir a revisão dessa Resolução. A RDC ainda não foi totalmente firmada porque já se fala que ela precisa ser revista, alguns pontos até reescritos”.
Zenaide Estrela, sobre isso defende: “a normativa da Anvisa não é definitiva. Tem coisa ali que é absurda. Não tem condição de uma Farmácia Viva atender. É uma normativa muito comercial”.
Para Zenaide, a Anvisa deveria ter preparado as farmácias vivas antes de lançar uma normativa tão restritiva, pois “a maioria das farmácias vivas do Brasil não atende à ela. Não tem como. Uma preparação prévia por parte da Anvisa teria evitado que ela tirasse a permissão para produzir fitoterápicos de várias Farmácias Vivas no Brasil todo”.
Planos para o futuro
Polliana Garcia conta que após um intervalo de cinco anos, a Agrotec está retomando contato com os sete municípios que tiveram acesso ao fitoterápido entre 2008 e 2010 e todos eles demonstram muito interesse em retomar o projeto. “Muitos pedem para que nós voltemos a fornecer os remédios fitoterápicos. Em contrapartida, nós percebemos uma fragilidade muito grande do próprio município, no que diz respeito ao fundo municipal de saúde, pois os recursos não condizem com a necessidade do município, para que o município tenha condição de custear as despesas de produção dos fitoterápicos”.
Ela afirma que existem várias ideias para colocar a Farmácia Viva para funcionar novamente, como a de firmar um consórcio entre esses municípios para que eles consigam contratar a Agrotec para a produção (sem fins lucrativos), como empresa terceirizada, para produzir os remédios. “Mas isso é uma semente que ainda não germinou”, declara.
Quando o trabalho da Farmácia Viva for retomado, Polliana afirma que há planos de capacitação de profissionais de saúde por meio de oficinas, para que eles estejam aptos para dispensar e orientar a respeito do modo de utilização das plantas, por meio de infusão ou decocção (chás).
Além das oficinas, já cursos de capacitação já estão sendo realizados, na sede da Agrotec. “Já fizemos cursos para agricultores, orientando a respeito do cultivo de plantas medicinais, fizemos cursos capacitando estudantes e profissionais da saúde. Está previsto alguns outros cursos de 8 a 16 horas.
As oficinas nós fazemos no local em cada município, envolvendo também o usuário do SUS, para despertar nele o interesse pelo uso das plantas medicinais e para que ele saiba que é um direito dele ter a oportunidade de uma terapia complementar”, relata Polliana.
Resoluções
Polliana Garcia afirma que o Governo Federal ainda não disponibiliza nenhum recurso específico que favoreça a consolidação das Farmácias Vivas para que o usuário do SUS possa ter acesso ao fitoterápico. Ela conta que devido às deficiências e dificuldades, vários grupos que funcionam como Farmácias Vivas no Brasil promovem um trabalho fantástico de voluntariado. “Eles se movimentam e sofrem muito para angariar fundos para manter a farmácia viva funcionando e não fechar, já que ainda não existe rubrica no Ministério da saúde específica para prover recursos para as farmácias vivas”, conta.
Mas para ela, o apoio do governo é mais do que fundamental. “Nós estamos reivindicando uma parceria com o governo estadual, para que o governo seja o financiador da reforma e adequação do laboratório de Diorama, para que possamos nos adequar às exigências da RDC18”. E prossegue: “Além disso, o projeto arquitetônico do novo laboratório está na Vigilância Sanitária para que eles acompanhem o processo e para que entremos em um consenso sobre quais as adequações que precisam realmente ser feitas pra que possamos atender a RDC”.
Há na Agrotec também grande abertura para parcerias com istituições escolares, conforme explica Zenaide Estrela: “A Agrotec recebe alunos para desenvolverem projetos e estudarem a fauna e flora da região. É um campus avançado de pesquisa. Estámos abertos à novas parcerias. Estamos abertos à visitação também, para as pessoas que quiserem conhecer”.
Isso, entretanto, não anula a responsabilidade do governo, conforme finaliza Polliana Garcia: “O que é preciso de verdade, para resolver o problema, é que o Governo Federal repasse um recurso dentro da assistência farmacêutica para viabilizar o funcionamento das farmácias vivas. Esse recurso proporcionaria que as farmácias vivas funcionassem como precisam no Brasil. Essas experiências têm que ter continuidade, não podem parar”.