Mais de 120 organizações de diversos setores acionaram o Ministério Público Federal contra 'revogaço' planejado pelo governo Jair Bolsonaro em portarias que estruturam a política de saúde mental no País. As entidades pedem que um inquérito civil seja aberto pela Procuradoria para apurar a medida que, na opinião do grupo, poderá levar a um retrocesso e desmonte da área.
As discussões do Ministério da Saúde já provocaram um racha entre psiquiatras. Na quinta, 10, mais de profissionais se uniram para fazer frente à Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), entidade representativa da categoria que defendeu o ‘revogaço’ em discussão no governo. Para os psiquiatras, a manifestação favorável da ABP deriva de ‘interesses corporativos e mercadológicos’.
Uma das mudanças previstas é retirar dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) o atendimento psiquiátrico voltados a usuários de drogas. A medida já havia sido alvo do governo antes: em julho, Bolsonaro regulamentou as chamadas ‘comunidades terapêuticas’, entidades que fazem o mesmo tratamento, mas são ligadas a igrejas e defensores da abstinência, enquanto os Caps atuam com a perspectiva de redução de danos e são do Sistema Único de Saúde (SUS).
Outra proposta visa afrouxar o controle sobre internações involuntárias dos pacientes dependentes de drogas, retirando a necessidade de comunicação ao Ministério Público, como é feito hoje.
Em ofício enviado à Procuradoria, 128 entidades afirmam que as medidas, caso sejam implementadas, representarão um desmonte de políticas públicas da área da saúde mental e abririam brecha para falta de fiscalização do governo sobre o acompanhamento de pacientes.
"O afastamento do SUS da gestão das ‘unidades de acolhimento’, relegando-as exclusivamente ao Ministério da Cidadania, abriria espaço à proliferação de comunidades terapêuticas e unidades privadas, financiadas com recursos públicos, mas não submetidas à fiscalização pela área da saúde acerca do plano terapêutico, presença de equipe de saúde mental e procedimentos internos de atenção", apontam.
O Ministério da Saúde informou que as portarias que estruturam a política de saúde mental estão sob escrutínio de um grupo de trabalho composto, além da APB, por representantes do Ministério da Cidadania, do Conselho Federal de Medicina (CFM), do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). A pasta alega que as regras estão ‘obsoletas’.
Profissionais ouvidos pelo Estadão também temem que as discussões em curso no Ministério da Saúde desemboquem em medidas para enfraquecer a Rede de Atenção Psicossocial (RAPs) do Sistema Único de Saúde (SUS), que segue um modelo integrado, territorializado e flexível desde a atenção básica.
Com a palavra, o Ministério da Saúde
O Ministério da Saúde esclarece que, atualmente, existem mais de 100 portarias relativas à saúde mental que estabelecem diretrizes para o tratamento e a assistência dos pacientes - e de seus familiares - com necessidades relacionadas a transtornos mentais e com quadros de uso nocivo e dependência de substâncias psicoativas. Após minuciosa análise de técnicos e especialistas da área, observou-se que muitas dessas portarias estão obsoletas, o que confunde gestores e dificulta o trabalho de monitoramento e a efetiva consolidação das políticas de saúde mental.
Com o intuito de tornar a assistência à saúde mental mais acessível e resolutiva, deve-se levar em consideração a análise de indicadores negativos nessa área, como o crescimento das taxas de suicídio nos últimos 15 anos no Brasil, com agravamento de lesões autoprovocadas; o aumento de indivíduos em situação de rua com transtornos mentais graves; o isolamento social de pacientes com transtornos mentais graves; o aumento da mortalidade desses pacientes; a superlotação nos serviços de emergência; o aumento do uso de drogas e dependência química no país; o crescimento e a expansão das cracolândias em grande parte das cidades brasileiras; e o aumento de trabalhadores afastados, pela Previdência Social, principalmente por depressão e dependência química.
Nesse contexto, o Ministério da Saúde instituiu um grupo de trabalho com representantes do Ministério da Cidadania, do Conselho Federal de Medicina (CFM), da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), encarregado de analisar, discutir, aprimorar, revogar e criar novos instrumentos para a garantia do cumprimento da nova Política Nacional de Saúde Mental, aprovada pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT) em dezembro de 2017, por meio da Resolução CIT nº 32/201 e da Portaria MS nº 3 588/2017.
Cabe informar, ainda, que, na nova atualização proposta, não há sugestão de fechamento dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e dos Consultórios de Rua. Sobre as Residências Terapêuticas, por não se tratarem de equipamentos médicos e serem destinadas, exclusivamente, ao acolhimento e reabilitação social, discute-se a sua transferência para o âmbito do Ministério da Cidadania.
Vale destacar também que o Ministério da Saúde, por meio de gestão tripartite, promoveu uma série de ações no âmbito da saúde mental durante a pandemia da Covid-19, como: videoaulas para profissionais da saúde e sociedade.
Ações de educação em saúde em defesa da vida, com a promoção de cursos de prevenção do suicídio e da automutilação na modalidade de educação a distância, disponíveis na plataforma Prevenção e Vida; instituição do Comitê Gestor da Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio; ampliação de serviços de saúde mental no SUS (Portarias 2.451 e 2.452, de 16 de setembro de 2020); repasse de R$ 650 milhões aos municípios para aquisição de medicamentos essenciais (Portaria 2.516, de 21 de setembro de 2020); entre outras.
Estão também em fase de elaboração as seguintes ações: criação de serviço telefônico para suporte em saúde mental - linha 196; elaboração de programa de treinamento para profissionais do atendimento 196; elaboração de programa de treinamento para profissionais da Atenção Primária à Saúde em consulta psiquiátrica; e treinamento de profissionais médicos e enfermeiros do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) em atendimento de urgência a doentes psiquiátricos.
Por fim, o Ministério da Saúde entende que a construção de uma rede de assistência à saúde mental essencialmente segura, eficaz, integral, humanizada, com abordagens e condutas baseadas em evidências científicas, e norteada por especialistas da área da saúde é um processo organizacional contínuo, que requer monitoramento constante e zelo com o investimento público.