
A exposição a traumas na infância, como violência física e sexual, luto, negligência ou até mesmo presenciar um crime ou acidente, tem forte correlação com o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos em adolescentes que vivem em países de baixa e média renda. A conclusão foi apresentada em um estudo inédito, realizado por pesquisadores do Reino Unido e do Brasil, publicado na revista científica The Lancet Global Health.
O estudo foi realizado com base na coorte de nascimentos de Pelotas (RS), um projeto original iniciado em 1982 que investiga o surgimento de doenças e agravos ao longo da vida. A cada 11 anos, uma nova coorte é formada, e atualmente, existem quatro coortes ativas (1982, 1993, 2004 e 2015). Os resultados apresentados referem-se à coorte de 2004, que incluiu 4.229 adolescentes (51,9% meninos e 48,1% meninas), acompanhados até os 18 anos.
De acordo com o estudo, 81,2% desses jovens estiveram expostos a algum tipo de trauma. Estima-se que cerca de um terço (31%) de todos os transtornos mentais observados possam ser explicados pela exposição a esses traumas, uma quantificação inédita. O estudo revelou que quanto maior o número de diferentes tipos de traumas vivenciados, maiores foram as chances de os adolescentes desenvolverem problemas de saúde mental, especialmente transtornos de ansiedade, de humor e de conduta.
A professora da Universidade de São Paulo (USP), Alicia Matijasevich, uma das autoras do estudo, explicou que o trabalho ajustou a associação entre o trauma e diversas variáveis, como transtornos psiquiátricos já presentes na infância e condições socioeconômicas. "Mesmo ajustando para todas essas características, o trauma é responsável por um componente muito importante dos transtornos mentais na vida adulta", afirmou.
Ela destacou ainda a relevância tanto de traumas vivenciados (como abuso sexual ou agressões físicas) quanto de traumas percebidos, como a criança que presencia maus-tratos à mãe, no desenvolvimento de transtornos mentais na vida adulta. "Fundamentalmente, transtornos de conduta e transtornos emocionais. Não gera outro tipo de transtorno, por exemplo, o TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade)", explicou.
A pesquisadora Megan Bailey, primeira autora do estudo, ressaltou que os resultados mostram que o trauma na infância tem um impacto duradouro na saúde mental, particularmente em países de baixa e média renda, onde esses traumas são comuns. "Em conjunto com estudos anteriores que também demonstraram esses efeitos tanto em jovens quanto em adultos em países de alta renda, fica claro que a exposição a traumas na infância é um fator de risco chave para o desenvolvimento de problemas de saúde mental de forma geral", disse Bailey.
Alicia Matijasevich também indicou que os resultados abrem novas possibilidades para o desenvolvimento de estratégias voltadas à redução do risco de traumas em crianças. "As intervenções podem ser tanto do ponto de vista populacional, evitando a violência, como do ponto de vista individual, detectando precocemente o trauma, tratando-o e evitando que desenvolva transtornos mentais na vida adulta", afirmou.
Em 2017, Pelotas liderou o programa de intervenção Pelotas Pacto Pela Paz, com a meta de reduzir o crime e a violência urbana por meio de projetos nas áreas de saúde, educação e sistema de justiça criminal. Avaliações iniciais mostraram uma redução nas taxas de crimes violentos, mas outros estudos são necessários para verificar se o programa também tem potencial de reduzir a prevalência de problemas de saúde mental entre os jovens.
A professora Alicia Matijasevich ressaltou a importância de reduzir a violência, afirmando que, ao diminuir a carga de violência na cidade, diminui-se também a violência percebida e vivenciada pelas crianças. "Se a gente diminuir a carga de violência na cidade, vai diminuir também a carga de violência que é percebida, que é vivenciada pela criança e também que é percebida por ela", explicou.
Ela também destacou a necessidade de intervenções no nível individual ou familiar, como políticas para reduzir a violência doméstica. "Ao diminuir a carga de violência por parceiro íntimo, a criança percebe menos violência dentro do núcleo familiar e vai vivenciar menos violência", afirmou.
Entretanto, muitas dessas intervenções são limitadas no tempo. Em geral, duram o período do estudo e, embora possam apresentar resultados positivos, não têm continuidade devido à falta de financiamento, por exemplo.
O professor do Departamento de Psicologia da Universidade de Bath e coautor do estudo, Graeme Fairchild, reforçou que os resultados são claros em demonstrar que o trauma na infância tem consequências duradouras na saúde mental. "O risco de problemas de saúde mental foi observado de maneira generalizada, com os jovens expostos a traumas apresentando maior risco de depressão, ansiedade e comportamento antissocial grave", destacou.
Por fim, Alicia Matijasevich ressaltou a importância de detectar precocemente qualquer trauma vivido por crianças, como abuso físico ou sexual, ou o luto de um familiar próximo. "Uma vez que a criança sofreu um trauma, é preciso detectar precocemente essa situação e tratá-la adequadamente", concluiu.
Um exemplo de programa que trabalha nessa linha é o Proalu (Programa de Acolhimento ao Luto), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que oferece apoio psicoterapêutico para crianças que vivenciaram perdas. A psicóloga Samantha Mucci relatou o caso de um menino de oito anos que manifestou quadro psicótico durante o luto pela morte do pai. "Ele retrava a vida antes de perder o pai com desenhos bonitos e coloridos, e, depois da morte, tudo em pedacinhos espalhados. Passou a ouvir vozes de comando, dizendo que ele tinha que morrer para ficar com o pai. Com um mês de psicoterapia, ele foi melhorando", contou.