Sem delongas, Nando Reis, 59, acha “um pé no saco” ser artista independente no Brasil. E atribui esse incômodo aos bolsominions, que, segundo o músico, vangloriam-se por destilar ódio, preconceito e ignorância. Nando, para quem não sabe, nunca se esquivou de dizer o que pensa. Quando estava nos Titãs e prestes a entrar no estúdio para gravar o elepê “Cabeça Dinossauro”, ao ler um artigo assinado pelo “rei” Roberto Carlos na Folha de S. Paulo no qual endossava a censura ao filme “Je vous salue, Marie”, veio-lhe à cabeça versos agressivos como “eu não gosto de padre, eu não gosto de madre”. Era o punk “Igreja”.
Foi um estardalhaço. Nos shows, por exemplo, Arnaldo Antunes retirava-se dos palcos. Para ele, a canção era ofensiva demais. Arnaldo só passou a aceitar melhor a música no especial da TV Globo, que foi ao ar no Natal de 1988, em que Caetano Veloso juntou-se à numerosa banda para uma versão histórica da terceira faixa do ‘Cabeça’, como os fãs chamam o furioso disco dos Titãs, lançado em 1986. Em seu canal no Youtube, onde comenta como surgiram suas composições mais famosas, Nando já disse que, com a idade que tem hoje, não escreveria “Igreja”. Mas aos 23 fazia sentido.
Com os Titãs, Nando gravou uma sequência de discos matadores. Além de “Cabeça Dinossauro”, lançaram “Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas” (1987), “Go Back” (1988), “Õ Blésq Blom” (1989) e “Tudo Ao Mesmo Tempo Agora” (1991). Nos anos 1990, membro “escondido” de uma banda de rock, fez parcerias com Marisa Monte e Samuel Rosa, sem esquecer, contudo, da relação com Cássia Eller, que começou a florescer neste período e inspirou a bela “All Star”. “Foi uma coisa muito marcante. Foi um divisor de águas”, afirma Nando Reis, em entrevista ao DM.
Em sua carreira solo, consagrada aos quatro ventos, Nando consolidou o talento de hit maker e, seja com “Para Quando o Arco-Íris Encontrar o Pote de Ouro” (2000) e “Infernal”, ou “MTV Ao Vivo” e “Luau MTV”, mostrou-se dono de uma obra grandiosa. E será isso que o cantor, compositor e violonista mostrará neste sábado, 6, em Pirenópolis, no Piri Gastrô, evento que conta ainda apresentação de Fábio Batista e a banda Marley in Jazz Quarteto: “Dois Rios”, “Pra Dizer Adeus”, “All Star”, “Relicário”, “Por onde andei”, “N”, “Pra Você Guardei o Amor” e “O Segundo Sol” estarão no setlist.
A seguir, confira os melhores momentos do bate-papo de Nando Reis com este repórter. Ele falou sobre vida nos Titãs, bolsonarismo, carreira solo, drogas, álcool, importância de Neil Young e seu “Alter The Gold Rush” em sua trajetória e, claro, afirmou: “não faço tributo à música ruiva. Eu sou a música ruiva”. Ninguém duvida disso, Nando. Confira:
Diário da Manhã - Nessas mais de quatro décadas na estrada, quais foram os momentos que mais lhe marcaram como músico, tanto para o bem quanto para o mal?
Nando Reis - Difícil responder a essa pergunta, porque é muito tempo. E eu não me lembro direito. Minha relação com a Cássia Eller foi uma coisa muito marcante. Foi um divisor de águas, um momento onde eu saí desse lugar de um membro escondido dentro de uma banda, de uma fração dela, para uma perspectiva de identidade própria, a qual me trouxe alegrias. Isso é muito bom. Há momentos que me marcaram para o mal, e apaguei: shows ruins, declarações infelizes. Mas nada tão grave a ponto de eu pensar que foi o mal.
DM - Você é um trabalhador da música pop e, por causa dos ataques direcionados aos artistas, sempre faz questão de dizer que depende do seu trabalho para sobreviver. Como é ser artista independente num contexto político igual a este que vivemos?
Nando - É um pé no saco. O bolsonarismo criou essa categoria de seres atuantes, os bolsominions, que são uns imbecis. Não tem jeito: bolsonimion é um idiota, um sujeito que não pensa, que é dotado de ódio, preconceito e ignorância. E que não tem vergonha de mostrar a sua estupidez. É chato pacas, entendeu? Sejamos diretos: Bolsonaro é o fim da linha. E o bolsonarismo é o final dos tempos. Para um artista, é um inferno viver na mira de um bando de imbecis.
DM - Fazem 21 anos que deixou o Titãs, banda com a qual gravou discos lendários, como “Cabeça Dinossauro”, “Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas”, “Õ Blésq Blom” e “Tudo Ao Mesmo Tempo Agora”. Desses clássicos, qual é o seu favorito?
Nando - Eu tenho uma predileção pelo “Jesus Não Tem Dentes…”, porque acho que ali a gente entrou na nossa sonoridade. É um disco equilibrado, bem resolvida a equação sonoridade, arranjo, composição e repertório. Mais até que o “Õ Blésq Blom”, embora tenha uma simpatia enorme pelo “Tudo Ao Mesmo Tempo Agora”. São quatro discos extraordinários. Eu incluiria o “Go Back”, mesmo sendo um disco ao vivo. Ali têm pérolas.
DM - Em janeiro deste ano, você festejou seus 60 anos de vida. E em plena atividade. Quais são as diferenças entre tocar agora comparado aos primeiros shows que fez nos anos 1980, com os Titãs - àquela época uma banda, como a gente sabe, muito numerosa?
Nando - Você se adiantou um ano. Completarei 60 no ano que vem. E em plena atividade. Mais até do que com 59 anos, pois o que eu fiz de coisas de janeiro até agora e o que farei até o ano que vem não está no gibi. São muitas diferenças. Acho que, em primeiro lugar, vivi coisas maravilhosas. Os Titãs me proporcionaram momentos de realização, regozijo, júbilo e gratificação e, assim, nem sei como descrever aquilo. Mas é fácil hoje, 30 anos depois, olhar e perceber a insegurança. Há uma tensão, por mais que você tenha aquela vitalidade, aquela jovialidade, que muitas vezes está associada ao ímpeto criativo. Posso dizer que, no alto dos meus 59 anos, só de pensar em refazer aquela trajetória, me dá um cansaço absurdo.
Bom que a vida não permite isso, de você voltar, renascer e tudo o mais. E, num primeiro momento, foi muito bom estar rodeado de amigos que se auto-encorajavam e eram pessoas com quem eu me dava muito bem. No entanto, hoje em dia, eu não consigo imaginar ter uma banda: trabalho em grupo, montei uma banda, vamos dizer assim. Mas as decisões eu tomo sozinho. Tá muito mais adequado à minha idade.
DM - Com hits lançados em dueto com Péricles, Projota, Duda Beat e Anavitória, percebe-se que sua visão de música está em sintonia com as novidades, perseguindo o novo e dialogando com o cantor e compositor Belchior. Qual é a grande sacada da MPB contemporânea?
Nando - Não sei dizer qual é a grande sacada da MPB contemporânea. Não penso dessa forma e nem saberia dizer qual é a MPB contemporânea. Muitos desses artistas que você citou são contemporâneos porque estão em atividade, mas têm perfis, idades e trajetórias completamente diferentes. Também não diria que estou em sintonia com as novidades. Tenho uma inquietação, uma disposição para trabalhar com outros artistas que não necessariamente sejam, vamos colocar entre aspas, novidade.
"Tenho uma inquietação, uma disposição para trabalhar com outros artistas que não necessariamente sejam, vamos colocar entre aspas, novidade"
E a perseguição do novo está muito associada à atividade da criação. É semelhante. Basicamente, o novo é muito mais aquilo que não foi feito do que exatamente o recente, no sentido do que surgiu agora. Não há diferença em trabalhar com artista mais velho do que eu, por exemplo a Alaíde Costa. A novidade se dá na nossa parceria. E não na novidade dela ter surgido agora. Não tem MPB contemporânea. Isso é uma bobagem.
DM - Você participa do podcast “Discoteca Básica” para analisar o disco “After The Gold Rush” (1970), um retrato preto-e-branco do fim dos anos anos 1960 feito pelo músico canadense Neil Young. Como foi a sensação de escutar o LP pela primeira vez e, desde então, qual a influência dele em sua trajetória como compositor, cantor e violonista?
Nando - Escutei Neil Young muito mais tarde do que se imagina. Foi a partir de 95. Já tinha 32 anos. Foi quando conheci trabalhos dele, um trabalho, por exemplo, de 1970. 25 anos depois do “After The Gold Rush” ter sido lançado. No entanto, a influência dele foi muito grande na minha trajetória como compositor, como cantor e violonista. Neil Young está muito relacionado à minha, digamos, relação com o timbre da minha voz, com um pouco de apaziguar esse incômodo da estranheza dele e da minha própria característica como cantor. Assim como a minha mudança total, especialmente do ponto de vista do compositor, passando a usar violão de aço, embora tivesse muito antes do próprio Neil violões de aço. Mas não da maneira como ele se tornou a minha marca e a minha especialidade.
DM - Há cinco anos você “não bebe, não cheira e não faz nada”, como declarou ao jornalista Silvio Essinger, numa entrevista que saiu no jornal O Globo. Imagino que seu processo criativo, seja na elaboração de versos e na construção da estrutura harmônica, foi permeado por essas substâncias ao longo de décadas. Como foi sua mudança de hábitos?
Nando - Essa é uma boa pergunta. E ela é de uma resposta difícil. Vamos começar pelo final: a mudança de hábitos foi importantíssima, foi um alento, porque eu tive uma relação abusiva com álcool e drogas, que durou décadas. E, evidentemente, quando eu decidi - ou quando consegui, melhor dizendo - é porque estava afetando também a minha relação até da criação. Há esse mito, ou essa mistificação, que o uso de drogas te torna mais criativo. Isso não é verdade. A criatividade é inerente. Ela é alimentada por muitos outros elementos.
"Dividir o palco com Sebastião é uma glória. Sebastião é um menino muito talentoso. Para quem não sabe, ele é o meu terceiro filho - tenho cinco"
No entanto, digo isso por experiência própria e só falo por mim, que o uso de drogas, no meu caso, era uma espécie de ignição que quebrava um pouco a minha inibição ou a minha super-crítica. Favoreceu muito o acesso à minha criatividade. Drogas não me deram criatividade. E acredito que não dê a ninguém. Mas, por um outro lado, não há chance de eu voltar. Isso é inegociável na minha vida. Não tenho nenhum interesse em viver como vivi.
DM - O show em Pirenópolis terá a presença do seu filho Sebastião Reis, a quem você dedicou a música “O Mundo é Bão Sebastião”. Como é a sensação de dividir o palco com Sebastião?
Nando - Dividir o palco com Sebastião é uma glória. Sebastião é um menino muito talentoso. Para quem não sabe, ele é o meu terceiro filho - tenho cinco. É músico, violonista e cantor. E muito bom. Ele tem me acompanhado agora na turnê voz e violão e no Nando Hits, como convidado especial, porque ele não entra desde o começo. E é uma alegria. É uma joia.
DM - O show em Pirenópolis será um tributo à “música ruiva”?
Nando - Não faço tributo à música ruiva. Eu sou a música ruiva.