O compositor popular Chico Buarque, que recebeu ontem em Portugal o prêmio Camões, escreveu obra essencial para compreender o Brasil do golpe de 1964 para cá. Nas músicas, retratou a construção de um trabalhador brutalizado, mostrou o cotidiano dos dias se repetindo e falou sobre um país calado pela ditadura. E agora entra - com toda justiça - ao seleto grupo de poetas e romancistas que ganharam a maior honraria da literatura em língua portuguesa, dentre os quais João Cabral de Melo Neto, José Saramago e Raduan Nassar.
Chico não sai de moda. Sua brasilidade é tão encantadora como costuma ser a piscadela da mulher amada durante o flerte. O pai era paulista. O avô, pernambucano. O bisavô, mineiro. Tataravô, baiano. Possui antepassados negros e indígenas, cujos nomes os parentes brancos trataram de suprimir da história familiar. É rigoroso na forma poética, mas evita panfletarismo de quinta ao provar que a música deve ser afetuosa nos tempos difíceis.
Para Chico, por mais que leia ou fale de literatura, por mais que publique romances e contos, por mais que receba prêmios literários, o bom mesmo é ser reconhecido no Brasil como compositor popular e em Portugal, como gajo, expressão lusa para moço. Mas é inegável que nos seus versos mora o que há de melhor da tradição poética das nossas letras: une passado e modernidade, criticidade e beleza, sociologia e estética. Tudo a serviço de sua gente.
“Chico transformou em patrimônio literário comum os amores de nossos povos, as alegrias de nossos carnavais, as belezas de nossos fados e sambas, as lutas obstinadas de nossas cidadãs e cidadãos pela conquista da liberdade e da democracia”, afirma o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que assinou o Camões entregue ao artista após recusa de Jair Bolsonaro, então chefe do Executivo, em 2019. O cantor foi escolhido por unanimidade, mas Bolsonaro chegou a falar à época que entregaria a láurea até “31 de dezembro de 2026”.
Amor à língua
Chico Buarque escreveu a primeira novela em 1974, “Fazenda Modelo”. Cinco anos depois, lançou a obra infantil “Chapeuzinho Amarelo”, até estrear no romance. Lançado em 1991, “Estorvo” foi seu primeiro livro no gênero. Nele há o melhor da literatura contemporânea. A trama embaralha-se, o narrador é precário, assim como o mundo que lhe cerca, as coisas ao redor dele, como o contexto conturbado do Brasil no qual o personagem se movimenta.
Nos próximos livros, continuou preocupado em discutir sociedade, como faz em “Leite Derramado”. Chico descreve o modus operandi de uma elite, vamos dizer assim, orgulhosa de ser tosca. Seu último romance foi “Essa Gente”, publicado já durante o governo Bolsonaro, o qual define como “ameaça fascista”. Um dos seus textos mais belos, “Para Clarice Lispector, com Candura”, saiu em “Anos de Chumbo”. “Poucos produziram obra tão ampla e variada quanto a sua”, analisa o crítico literário Gilmar Rocha, em estudo.
Chico diz que, ao receber o Camões, pensou no seu pai, o historiador e sociólogo Sergio Buarque de Holanda, de quem herdou alguns livros e o amor pela língua portuguesa. “Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária”, recorda-se o artista, acrescentando que ele, o progenitor, não ficou aborrecido quando se bandeou à música.
Na dramaturgia, fez “Ópera do Malandro” e “Roda Viva”, clássicos do teatro brasileiro. “Chico reside na sua intrínseca coerência com a contribuição global que essa singular personalidade vem trazendo, através da sua excepcional sensibilidade poética, ética e ideológica, para a vida cultural do país”, analisa o crítico teatral Yan Michalski, em sua “Pequena Enciclopédia do Teatro Brasileiro”, livro de referência às artes cênicas.
A carreira musical deu salto em 1971, quando já tinha sentido dor de cabeça danada por causa de “Apesar de Você”, que se tornaria, aos olhos da história, exemplo perfeito da habilidade buarquiana em construir prosódias refinadas, cheias de tons políticos, lirismo amadurecido e sensualidade acentuada - a coisa começa a se transformar no elepê “Construção”. Chico precisou driblar a censura, no que se revelou mestre de primeira grandeza, até que descobriu a experimentação estilística capaz de confundir os militares.
Bem-humorado e sagaz, inventou um compositor para fugir da perseguição ditatorial - em certa época, bastava os censores lerem nas letras o nome de Chico para vetá-lo. Sob a mordaça dos anos de chumbo, sem muita opção de escolha, criou o sambista Julinho da Adelaide, autor de “Acorda Amor” e “Jorge Maravilha”. Julinho até deu entrevista para “O Pasquim”, feita por Mário Prata, numa das peças mais hilárias do jornalismo brasileiro.
Palcos e livros
Segundo o presidente da Biblioteca Nacional, Marco Lucchesi, trata-se de uma conquista “extremamente forte” e representa uma espécie de Nobel da língua portuguesa não só por todos aqueles que receberam África, os países africanos, Brasil e Portugal, mas também pela alta qualidade de seus jurados. “O Prêmio Camões é uma proposta que avança além das fronteiras e, no fundo, a partir da literatura promove a cultura do diálogo e da paz”, diz Lucchesi, que é poeta e ocupa a cadeira 15 da Academia Brasileira de Letras (ABL).
“Reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo”, encerra Chico, artista que se interessa pela palavra.
Veja todos os vencedores do Camões
1989 - Miguel Torga, Portugal
1990 - João Cabral de Melo Neto, Brasil
1991 - José Craveirinha, Moçambique
1992 - Vergílio Ferreira, Portugal
1993 - Rachel de Queiroz, Brasil
1994 - Jorge Amado, Brasil
1995 - José Saramago, Portugal
1996 - Eduardo Lourenço, Portugal
1997 - Artur Carlos M. Pestana dos Santos, o Pepetela, Angola
1998 - Antonio Cândido de Melo e Sousa, Brasil
1999 - Sophia de Mello Breyner Andresen, Portugal
2000 - Autran Dourado, Brasil
2001 - Eugênio de Andrade, Portugal
2002 - Maria Velho da Costa, Portugal
2003 - Rubem Fonseca, Brasil
2004 - Agustina Bessa-Luís, Portugal
2005 - Lygia Fagundes Telles, Brasil
2006 - José Luandino Vieira, Angola
2007 - António Lobo Antunes, Portugal
2008 - João Ubaldo Ribeiro, Brasil
2009 - Armênio Vieira, Cabo Verde
2010 - Ferreira Gullar, Brasil
2011 – Manuel António Pina, Portugal
2012 – Dalton Trevisan, Brasil
2013 – Mia Couto, Moçambique
2014 – Alberto da Costa e Silva, Brasil
2015 – Hélia Correia, Portugal
2016 – Raduan Nassar, Brasil
2017 – Manuel Alegre, Portugal
2018 – Germano Almeida, Cabo Verde
2019 – Chico Buarque, Brasil
2020 – Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Portugal
2021 – Paula Chiziane, Moçambique
2022 - Silviano Santiago, Brasil