Seu Jorge, 54, sobreviveu ao crime e à pobreza. Sambou e cantou, requebrou e vocalizou. Requebrou estimulado pelo suingue-balanço-funk, sacou? Como os craques do Flamengo – time do qual é torcedor e onde a mãe sonhou em vê-lo atuar na esperança de que dias melhores viriam –, guia-se pela inteligência musical. Joga nas ancas, esse artistão da porra.
Há uma tradição de brasilidade – não necessariamente limitada aos sons – que antecede nosso Jorge Mário da Silva: Garrincha driblando zagueiros durões nos gramados europeus, Pixinguinha deixando todo mundo enlouquecido em Paris, Cartola narrando aquele cotidiano difícil da favela, Luiz Melodia falando de um certo farrapo humano, Sandra Sá lembrando daqueles olhos coloridos, Tom Jobim usando a borracha pra achar o acorde perfeito.
Maestro soberano da música brasileira, Tom recebe nesta terça-feira, 18, homenagem pela voz de Seu Jorge e pelo piano de Daniel Jobim, seu neto. O show estreou em 2020, voltou a ser apresentado no ano passado e, agora, chega ao In Concert. Quem não conseguiu os ingressos – paciência – terá a possibilidade de assisti-los (veja acima) no Youtube.
Seu Jorge e Daniel são acompanhados por Adriano Trindade (bateria) e Sidão Santos (baixo). Para celebrar os amantes (estamos no mês deles), deve-se esperar nada menos que “Luiza”, “Eu Sei que Vou Te Amar”, “Ligia” e “Garota de Ipanema”. Os músicos prepararam um roteiro quase blindado ao fracasso, se formos pensar bem. Tom, entendemos, não é soberano à toa.
À dupla, em outubro, juntaram-se Carlinhos Brown, Carol Biazin, Celeste, Alaíde Costa e Roberto Menescal. Os artistas regressaram ao Carnegie Hall, Nova York, 61 anos após concerto que apresentara ao mundo Tom Jobim, João Gilberto, Sérgio Mendes e Carlos Lyra. Banquinho, violão e piano acústico levaram 2,8 mil pessoas a ronronar canções atemporais.
A ideia ali era óbvia: indicar o futuro da bossa nova. Talvez mostrar como o estilo impacta a música pop – sobretudo a sonoridade de Billie Elish (devota ao ritmo brasileiro, já sabemos) e Luísa Sonza (outra apaixonada). Houve até telão do espetáculo na Times Square, principal via da metrópole estadunidense. Transcorreu-se uma hora e meia, duas horas de show.
No Carnegie, o público entoou junto dos artistas grandes sucessos, numa demonstração de que – diria o tropicalista Caetano Veloso – a bossa nova continua foda. Salvo uma ou outra exceção, Seu Jorge e Daniel Jobim se dirigiram à plateia em português, ainda que o estilo tenha mexido com o saxofonista Stan Getz e o cantor Frank Sinatra. A noite começou com três hits eternos: “Chega de Saudade”, “Samba de Uma Nota Só” e “Samba do Avião”.
Daí a total familiaridade de Jorge e Daniel com a música jobiana. Quem for ao Flamboyant, portanto, ficará satisfeito com o que irão tocar. Conforme Seu Jorge, num depoimento antes do show no Carnegie, lá se vão 60 anos do concerto histórico, que mostrou “nossa arte para o mundo”. Definiu ainda o roteiro musical bossa novista como “repertório de tanta sensibilidade”, o que se observa pela própria discografia do autor de “Samba Esporte Fino”.
Desde os hits mais populares (“Burseguinha”) até as canções nem tão conhecidas assim (“O Samba Tá Aí”), Seu Jorge se alimenta no violão sincopado de João Gilberto. São acordes com sétima. Ou sambísticos e jazzísticos. Dão ritmo. João, o cara que sem ele jamais teria existido a bossa nova, precisou de apenas um minuto e 59 segundos para mudar a música brasileira, fundamentado pelo escritor e jornalista Ruy Castro na obra “Chega de Saudade”, de 1990.
Pelo mundo
Em termos sonoros e até hollywoodianos, Seu Jorge se tornou a personificação da brasilidade mundo afora. Apenas no Spotify, streaming mais usado para compartilhamento de canções, é ouvido por mais de 14 milhões de pessoas. Nascido em Belford Roxo, na baixada fluminense, iniciou a carreira há 30 anos nas coxias da companhia de teatro da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ, com a peça “A Saga da Farinha”.
Fazendo teatro diante da luz solar e tocando samba noite adentro, tornou-se figura conhecida na boemia carioca. Participou até de bailes funk. Entre 1990 e 2000, acompanhou a banda Planet Hemp como percussionista durante a turnê “A Invasão do Sagaz Homem Fumaça”. Reapareceu, então, em 2001 com o disco “Samba Esporte Fino” – reverenciado por apreciadores de música brasileira como importante trabalho produzido no século 21.
Fez nele crônicas do cotidiano ao qual estava inserido e caricaturas sociais. Produzido por Mario Caldato e Daniel Ganjaman, o disco emplacou nas rádios “Carolina”, mesmo que o trabalho não tenha sido divulgado pela gravadora Regata como se esperava. Seu Jorge integrava o elenco de “Cidade de Deus”, um dos mais importantes filmes do cinema brasileiro nos anos 2000. Em seguida, trabalhou com o cineasta Wes Anderson.
Moro no Brasil/ não sei se moro muito bem ou muito mal/ só sei que faço parte do país/ inteligência é fundamental Farofa Carioca
Para o jornalista James Gavin, do “ New York Times”, as canções de Seu Jorge são dançantes e alegres, mas ele “tem a presença taciturna e os olhos tristes e injetados de sangue de um homem que já viu demais”. Em 1990, a casa em que morava foi invadida e o irmão, assassinado a tiros. Negro no país do mito da democracia racial, um tio lhe perguntou o que faria para cuidar da mãe e dos irmãos mais novos. “Serei músico”, disse.
Fundou, logo depois, a banda Farofa Carioca. Inspirado pela música recifense, debutou no cenário fonográfico com o disco “Moro no Brasil”, publicado em 1998. “Moro no Brasil/ não sei se moro muito bem ou muito mal/ só sei que faço parte do país/ inteligência é fundamental”, dizia, na faixa-título. Em 2013, mudou-se para Los Angeles e, no fim da década, início da próxima, viveria o guerrilheiro Carlos Marighella nos cinemas. Sabemos como foi.
Seu Jorge e Daniel Jobim cantando Tom Jobim
Terça-feira, 18, às 19h30
Shopping Flamboyant
Ingressos esgotados