Na época do Império, todo literato que militava nas letras brasileiras tinha um sonho: - Ir à Paris; aliás, o francês era a segunda língua da elite intelectual brasileira, pois Paris era considerada a Meca da cultura universal
Os anos de 1899 a 1902 podem ser considerados como o apogeu da belle-époque parisiense quando a alta sociedade era dominada pela nobreza e quase todos os homens e mulheres usavam chapéus, aqueles com o indefectível bigode e as mulheres com saias compridas até o chão. Ah! Usavam sombrinhas e bengalas nos passeios pelas avenidas, principalmente na Champs-Elysées.
A década de 1920 foi a época de efervescência cultural de Paris, com o Impressionismo (Monet e Renoir), a fase verde-rosa de Picasso, o Fauvismo (Matisse), o Cubismo (Picasso e Braque), Dadaismo (Tzara) e o surrealismo (Breton e Sartre) e foi, também, por esta época que foram lançados as duas obras literárias mais importantes do século - Em Busca do Tempo Perdido e Ulysses, respectivamente de Marcel Proust e James Joyce.
Foi no final desta década (1921) que o escritor norteamericano Ernest Hemingway desembarcou em Paris na companhia da esposa Hadley; graças à indicação de um seu amigo e conterrâneo, o escritor - Sherwood Anderson, o casal se hospedou no Hotel Jacob et d´Angleterre, na rue Jacob, nr. 44, bem no coração da rive gauche (lado esquerdo do rio Sena), perto da Igreja St-Germain-des-Prés; depois o casal se mudou para um apartamento na Rue Cardinal Lemoine. nr. 74.
Uma das maneiras de se manter em Paris, enquanto projetava se tornar escritor era enviar artigos, como free-lance, para o Jornal "Toronto Star" do Canadá (de onde recebia 75 dólares mensais); foi por aquela época que Hemingway conheceu duas mulheres, ambas norteamericanas, que tiveram muita influência na sua vida cultura em Paris : Sylvia Beach e Gertrudes Stein; traço, em rápidas pinceladas o perfil das duas.
Sylvia Beach (1887/1962) chegou a Paris em 1917, quando abriu uma livraria, inicialmente na rue Dupuytren , número 8, para a qual ela deu o nome pomposo de "Shakespeare and Company", porém, algum tempo depois se mudou para um local mais espaçoso, na rue L´Odeon, nr. 12; nesta livraria, Sylvia além de vender livros escritos no idioma inglês, emprestava-os mediante um pagamento mensal, costume herdado de outra livraria "La Maison des Amis des Livres - A casa dos amigos dos livros", situada não muito distante dali, de propriedade da francesa Adrienne Monnier e que acabou se tornando sua amiga para sempre.
O diferencial de outras livrarias daquele tempo é o fato dos clientes, ao invés de comprarem os livros, "pegavam-nos emprestados", mediante um pagamento mensal.
No seu livro "Paris é uma Festa, E. Hemingway. Ed. Bertrand Brasil, 9a. edição, 2007" Hemingway traça um perfil da sua amiga Sylvia Beach:
- Sylvia tinha um rosto vivaz e agudo, olhos castanhos vivos como os de um animalzinho e alegres com os de uma menina e, coroando sua testa altiva, cabelos castanhos ondulados que ela penteava para trás e mantinha cortados abaixo das orelhas e na linha da gola da jaqueta de veludo marrom que usava sempre. Tinhas belas pernas e era generosa, jovial e interessada; amava brincar e fofocar. Jamais nenhuma pessoa foi mais simpática comigo.
Como podemos observar por este perfil que Hemingway traçou da amiga Sylvia, ele, como era seu costume, não deixou de "admirar as suas pernas".
Gertrude Stein (1874/1946) chegou a Paris em 1903 na companhia do seu irmão Leo e foram morar em um apartamento localizado na rue Fleurus, 27; Gertrudes, filha de família de milionários nos Estados Unidos, foi tentar a carreira literária em Paris e Leo que era amante da arte moderna, acabou contaminando-a; no final da sua vida, seu apartamento mais parecia um museu, com obras de Braque, Matisse, Van Gogh, Picasso, Monet e muitos outros
Em 1909 Gertrudes e Leo repartiram o acervo que acumularam e Alice Toklas (outra prendada escritora) foi morar com ela, tornando-se sua "esposa", quando Gertrudes passou a produzir e "inventar" uma nova linguagem na escrita, o ainda o pouco conhecido praxis ou "escrita automática" como ela a denominava.
Durante muito tempo Stein e sua companheira Alice viveram neste endereço, o qual se tornaria lendário e um importante ponto de encontro de amigos para "tomarem chá" e discutirem literatura, como Picasso, Matisse, Braque, Apolinaire, Ezra Pound, James Joyce, Ernest Hemingway, F. Socott Fitzgerald, John dos Passos e muitos outros.
Gertrudes era, realmente, genial e para citar apenas uma das suas obras "Autobiografia de Alice Toklas", livro fundamental da vanguarda dos anos 10,20 e 30 do século XX, onde ela conta como jovens artistas (pintores) e escritores, vindos do mundo inteiro, se encontraram em Paris.
O incontestável era o fato da livraria "Shakespeare and Company" tornou-se o ponto de encontro dos intelectuais estrangeiros que viviam em Paris naquela época e Miss Stein e Hemingway eram "habitué" da livraria e lá todos se conheciam, principalmente no final das tardes quando discutiam literatura; Hemingway tornou-se o maior amigo de Sylvia; veio a guerra e Hemingway se alistou como voluntário e, um dia, após o seu termino, ele voltou para "salvar Sylvia e sua livraria do jugo dos nazistas".
Deixo que Sylvia conte o que aconteceu, como ela narrou no seu livro autobiográfco (Shakespeare and Company - Uma Livraria na Paris do entre guerras, Sylvia Beach, 1959).
"A liberação de Paris estava quase completa, nosso quarteirão, perto do Jardim de Luxemburgo, foi um dos últimos a se livrar da ocupação, ainda se ouviam muitos tiros na rue L ´Odeon e já estávamos cansadas daquilo quando, um dia, uma fileira de jipes subiu a rua e parou em frente da livraria. Ouvi gritos - Sylvia!, è Hemingway! É Hemingway, gritava Adrienne. Desci correndo as escadas e demos um encontrão, ele me abraçou e me girou no ar, sob aplausos de quem estava na rua e nas janelas.
Subimos, ele estava de uniforme, chamuscado e ensanguentado, uma metralhadora largada no chão. Quis saber se havia algo que pudesse fazer por nós, pedimos que enfrentasse os francos atiradores nazistas em cima dos telhados das casas da rua. Ele levou sua companhia de jipes para os telhados. Foram os últimos tiros que ouvimos na rue L ´Odeon. Ele partiu com a incumbência de libertar, disse-nos, com cara de galhofa - A adega do Hotel Ritz ".
(Hélio Moreira, da Academia Goiana de Letras, Academia Goiana de Medicina, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)