Um casal se abraça na cama, desnudo. Homem e mulher se beijam, num encontro de línguas – uma sinfonia molhada ao gosto do amor – apaixonadas. Na sequência, enroupada com longo vestido branco que termina no chão, vemos uma deslumbrante jovem senhora andando por um amplo apartamento, em Copacabana, bairro nobre do Rio de Janeiro.
Em off, ela diz que nada lhe fazia supor estar perto de descobrir um império. Delicadamente, como quem vai se deparar com outra vida, abre a porta: uma fotografia dela em preto e branco na alegria da juventude está depositada em cima da Monalisa. Instantes depois, deixa as mãos sobre os vidros da janela, como se estivesse transando – a boca aberta expressa o prazer do sexo e os cabelos, esvoaçantes, caminham pela tenra geografia corporal.
G.H. tinha acabado de encerrar uma paixão, chamemo-la assim, dessas que fazem você revirar as lembranças guardadas nas gavetas da memória. Ela é uma escultora da elite carioca e, desafortunada em matéria de amor, tal como já fomos alguma vez no catso da vida, resolve tomar uma decisão importante: arrumar o apartamento. Começa pelo quarto de serviço, cômodo no qual ela havia colocado os registros daquela outra vida.
A empregada, todavia, pediu demissão. No quarto, G.H. se vê às voltas com uma gigantesca barata que revela o horror da personagem diante do mundo, reflexão de uma sociedade preconceituosa contra seres escolhidos como subalternos. Cara a cara com o inseto, a escultora vive espécie de via-crúcis existencial, numa experiência que a leva a se questionar acerca de identidade e a faz refletir sobre as convenções sociais que aprisionam o feminino.
Baseado no romance publicado em 1964 pela escritora Clarice Lispector, “A Paixão Segundo G.H.” (Rocco, R$ 49,90) verteu para a tela grande um dos textos mais complexos da autora. Há na prosa um fluxo de consciência que, a grosso modo, torna a empreitada lítero-cinematográfica algo difícil de se pôr em prática – sobretudo durante a cena do clímax, quando a protagonista resolve mastigar a tal barata, após um fascinante monólogo interior.
Luiz Fernando Carvalho, cineasta, acredita que “a ideia do fim, diagnóstico da narrativa moderna no cinema, inaugura na personagem G.H. um tempo novo, onde o próprio tempo e espaço estão fora de si, fora das leis e da ordem, fora do campo do mundo, fora de nós”. Segundo ele, a experiência da paixão, numa perspectiva transgressora e até mesmo imagética, torna insustentável a antiga estrutura da personagem e do próprio filme em si.
Para o diretor, que levou ao cinema “Lavoura Arcaica” (2001), inspirado na obra escrita por Raduan Nassar, a narrativa se metamorfoseia “em uma busca por si mesma em meio a estilhaços, silêncios, giros, sair de si, voltar a si”. “O retrato da patroa G.H., desenhado a carvão pela doméstica Janair em seu quarto de empregada, expõe fissuras sociais, vereditos morais e civilizações ancestrais”, detalha Luiz Fernando, a quem o italiano Bernardo Bertolucci definiu certa vez como “arcaico, hipnótico, mestre de si e todos nós”.
Luzes
Com cenas que evocam as pinturas do artista barroco Caravaggio, em termos de iluminação ou plasticidade fotográfica, o diretor opta por uma condução capaz de criar um ritmo que avança por diferentes gêneros narrativos, invocando elementos que remetem a uma carta cifrada. Seria uma carta de amor? Provável. Ou uma carta de despedida do mundo? Afinal de contas, toda paixão saboreada implica no adeus e, por isso mesmo, no renascimento.
Maria Fernanda Cândido, a atriz que interpreta G.H., afirma que o trabalho preparativo para o papel durou “um ano diário”. Ao jornalista Mario Sergio Conti, durante o programa “Diálogos”, da GloboNews, a artista contou que foi preciso preparar o corpo e a voz, de forma que fossem instrumentos afinados quando ela estivesse se aproximando do texto. Embora o livro lhe tenha marcado a história, conforme revela na entrevista, Maria Fernanda reconhece que não é “texto cotidiano”, mas há toda a vida dela presente na atuação.
Nascida em 1920, na cidade ucraniana de Chetchelnik, Chaya Pinkhasovna Lispector é uma das grandes autoras em língua portuguesa da segunda metade do século 20, graças a sua prosa lírica, estilo singular que apresenta o cotidiano com requintes existenciais. Jornalista de labor nas Redações, foi fichada pela Delegacia Especial de Segurança Política e Social, o Dops, cujo arquivo contava com informações sobre lideranças políticas e militantes.
Em 1973, o Serviço Nacional de Informações, o SNI, principal órgão de inteligência da ditadura, reuniu documentos que apresentavam informações biográficas sobre Clarice. Os registros contam, por exemplo, da participação dela numa passeata realizada por estudantes para protestar contra a censura, no Rio de Janeiro, em 1968. Por ironia da história, “A Paixão Segundo G.H.” ganhou edição pela primeira vez no ano em que os militares deram o golpe.
Numa conversa com Affonso Romano de Sant´Anna e Marina Colasanti, em outubro de 1976, Clarice revelou ter por hábito não ler seus livros já publicados. “Quando é publicado, é como livro morto. Não quero mais saber dele. E quando eu leio, estranho, acho ruim. Aí não leio, ora”, disse. Clarice Lispector jamais leu “A Paixão Segundo G.H.”, mesmo que tenha se tornado um clássico. Um clássico, agora, prestes a ganhar uma versão cinematográfica.
A Paixão Segundo G.H.
Diretor: Luiz Fernando Carvalho
Elenco: Maria Fernanda Cândido, Samira Nancassa
Duração: 2h 04min
Estreia na quinta-feira, 11