Em anos remotos, quando não havia essa onda alienadora e hipnotizante das redes sociais, era divertido e prazeroso participar das trocas de ideias ou simplesmente ficar na escuta do que as pessoas diziam. Foi uma dessas ocasiões, na propriedade rural então visitada, que me proporcionou ouvir animada conversa entre a dona da fazenda e a esposa do trabalhador.
No diálogo os assuntos surgiam espontâneos e se sucediam variados, desde as recomendações e os afazeres cumpridos ou por cumprir até aos acontecimentos corriqueiros da vida na roça e na cidade.
Na varanda, entregava-me ao cuidado de ultimar o preparo de modesta tralha para a pescaria dos netos na represa, logo ali depois do pomar, o que não me impedia de pôr sentido no assunto e no palavreado das duas.
Fiel a hábito antigo, salutar ou condenável, de atentar para a forma como as pessoas se expressam, se em frases e termos corretos ou em pronúncia errada, percebi que o verbo dever era seguidamente por elas empregado na terceira pessoa do singular. Enquanto a patroa falava deve ser, a outra empregava a forma verbal deva ser. Era divertido ouvir frases como: “Deve ser por isso que ele não veio”, dizia a primeira, enquanto a segunda divergia: “Deva ser por causa da greve dos ônibus”. E assim prosseguia o diálogo, uma empregando o verbo dever na terceira pessoa do singular do modo indicativo e a outra usando o modo subjuntivo.
Foi até que a mulher do peão, na repentina suposição de estar falando errado, inventou uma forma mista de pronunciar o verbo: nem deve nem deva, mas “déva”, assim mesmo, com o artigo e em timbre aberto.
- Eu penso que “déva” ser por isso, disse surpreendentemente.
Incontido, soltei o riso e tive que justificar minha atitude:
- Estou rindo porque a senhora estava certa e a patroa errada. Continue falando deva ser quando não tiver certeza do que está dizendo.
Desde os tempos de magistério, alerto para esse equívoco no falar urbano em face do acerto indiscutível da linguagem rural na expressão “deva ser”.
Na cidade todos dizemos, inadvertida e erroneamente, “deve ser”, embora não tenhamos certeza. Afirmamos, indicamos taxativamente, ao usarmos a terceira pessoa do singular do indicativo presente. Errado!
Na roça, embora inconscientemente, as pessoas empregam a forma verbal “deva”, na terceira pessoa do singular do subjuntivo presente que é o modo adequado para os casos de dúvida, desejo, opção e similares. Corretíssimo!
Eis um caso curioso em que a gente simples do campo dá lição de gramática aos bem-falantes “eruditos” da cidade!
(Prof. Raymundo Moreira do Nascimento, advogado, jornalista e escritor)