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Repórter conta causos inusitados de quem flana pelas páginas da vida

Era um sebo na Avenida Goiás, no Centro de Goiânia. As prateleiras acomodavam pérolas da arte de flanar pela cidade chutando as tampinhas do cotidiano que eu sempre quis ler, mas nunca tinha tido oportunidade. Então puxei “Malagueta, Perus e Bacanaço”, do mestre do conto-reportagem João Antônio, e sentei num sofá que estava posicionado ao lado. “A vida dos outros nunca me interessou. Nem a dela, embora viva me provocando. Quer casamento, com certeza”, disse o narrador de “Afinação da Arte de Chutar Tampinhas”. Gargalhei.

Reza a lenda que um país é constituído por homens e livros, mas os homens... bem, os homens... e as livrarias lutam para existir. A saída, como fez a Palavrear, localizada no no Setor Leste Universitário, foi migrar para o ambiente virtual. Mas falta o charme da conversa despretensiosa entre uma folheada e outra, entre um café e outro, entre um Machado e outro: os ratos de livraria estão indo embora. Assim são esses tempos pandêmicos.

Ainda que esse tipo estranho chamado leitor esteja cada vez mais em falta, na Palavrear você encontra obras-primas de William Faulkner, como “O Som e a Fúria”, e da literatura etílica, como “Sobre Bêbados e Bebidas”, de Charles Bukowski. Ou ainda textos politicamente engajados, tipo “Antifa: Manual Antifascista”, de Mark Bray . Gosta de poesia? Lá tem Ana Cristina César, tanto sua obra poética quanto ensaística. É um paraíso para literatos.

O que me intriga é a onda de adquirir livros pelo mesmo aplicativo no qual se pede um quilo de carne às 10h da manhã para fazer o almoço numa segunda-feira. Eu entendo, pode ser prático, símbolo da vida moderna, essas balelas todas, bull shit, mas uma coisa é fato: não deixa de ser triste, solitário. Livraria tem cheiro, tem o charme da alma da literatura, tem o cafezinho numa companhia agradável, em resumo: entrar numa livraria é parar os ponteiros do relógio. E é uma experiência de vida que, por exemplo, a Amazon ou a Estante Virtual não te entregam.

Há, em meu caso, mais um agravante: tenho a pretensão de vencer na vida batucando no teclado. Nesse caso, as livrarias se tornaram tradicionais pontos de encontro entre escritores e seus leitores, entre jornalistas e suas fontes - embora o ofício seja feito, em suma, pelo zap ultimamente. Ali é o momento que temos para trocar impressões, ouvir sugestões e, dependendo da ocasião, molhar a palavra com uma cervejinha: talvez você nem lembre que isso existiu. Mas, existiu!

Palavrear: livraria disponibiliza catálogo em site - Foto: Reprodução/ Facebook

As teorias a respeito de como estacionamos nesse ponto são muitas. Por que, ora, a Amazon – líder do mercado de e-book e quinquilharias virtuais – sepultaria as livrarias? Porque, seguindo a lógica da empresa, navegar pelo site pode ser bastante lucrativo – pra ela, é lógico: entre as abas do consumo internético, estão iphones e umas querelas de produtos caros. Outro aspecto são os descontos oferecidos pelas livrarias no comércio eletrônico, chegando a 50% ou 60%.

Semelhante acontece com os sebos, apesar dos preços serem mais amigáveis. Em todas as cidades que visito, por obrigação do ofício ou mero prazer de andarilho inveterado, saio em busca do sebo perdido. Boa parte dos livros que garimpei vieram da prateleira deles. Gosto de livros antigos porque são bonitos – e têm suas páginas charmosamente amareladas. Até apelidei as traças mais conhecidas. Nada mais justo: elas me ajudam, em termos de bloqueio textual, pra ver se bate uma venta da inspiração da crônica do louco lirismo vindouras dos bares de João do Rio.

Óbvio que, ao me deparar com a ideia que esses pontos podem falecer, fico triste: até hoje, numa dessas crises existenciais que acomete os escritores sobre se vale a pena ou não continuar escrevendo, recorro às tais páginas amareladas de algum livro comprado em sebo. Concluo daí que, sim, vale a pena. Tanto vale que me pego imaginando dividir uma prateleira na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, ao lado de Clarice Lispector. Mas, se eu chegar à estante do Armazém do Livro junto com Bernardo Élis, aqui em Goiânia, já valeu.

Isso sem falar, evidentemente, nos amantes de sebos, digo, na fornicação intrínseca ao ambiente: dizem as más línguas por aí que praticava-se Brasil afora o coito nas circunstâncias mais inusitadas, como na escada. Hoje, meu caro Joaquim Ferreira dos Santos, ninguém mais faz ideia do que quis dizer o mestre Drummond naquele soneto com “buquinemos, amiga, neste sebo”.

Das gargalhadas provocadas pelas tiradas hilárias do mestre João Antônio, fui para as lágrimas que escorrem de meus olhos tristes quanto a morte de sebos e livrarias para o nascimento de farmácias e academias. Será que uma cidade se faz sem cultura, mas com antidepressivos e braços malhados? Que tipo de sociedade nos tornamos? Livrarias e sebos do mundo, uni-vos.

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