Nay Porttela diz que Goiânia é “coisa de umbigo”. Constrói sua essência na metrópole, é lugar onde se inspira, põe os pés no chão e cria músicas. Goiana do "pé rachado" — como se fala no Estado —, tem compreensão de que não precisa estar num lugar específico para que suas composições alcancem o público. Vivemos, afinal, em uma aldeia global.
A cantora acaba de lançar o disco “Garoa”, disponível nas plataformas de streaming. Da primeira faixa (“Liberdade, Vai”) à última (“Sem Medo Com Toda Coragem”), a obra demonstra sonoridade leve, com arranjos sofisticados, harmonias intimistas e violões desacelerados evocando a bossa de João Gilberto. Ressoa brasilidade, deliciosa brasilidade.
Contrabaixo desenhando grooves charmosos. Percussão conduzindo sambas minimalistas a nosso ouvido. Acordes murmurando timbre elétrico do Fender Rhodes. Nay, então, vocaliza: “vou, vou sem medo/ amanhã sol vai chegar/ quando eu acordar/ livre, leve e solta”. “Passarin” estaria — fácil, fácil — nalgum disco da pérola negra Luiz Melodia.
“Garoa” é um dos melhores álbuns do ano. Foi gravado no estúdio Banana Música, em Goiânia, entre dezembro do ano passado e janeiro deste ano. Esse período é marcado pelas chuvas. Daí sentirmos gotas repousarem na pele escutando a voz de Nay, que expressa em nossos ouvidos calmaria — estamos, como se sabe, na estiagem. Lembrar, então, é essencial.
Com mixagem assinada por Luciano Portela e masterização de Rafael Paz, Nay apresenta neste trabalho uma brasilidade encantadora. São canções que trazem o conforto da memória afetiva e do amor pela música popular brasileira, equilibrando-se entre influências clássicas e contemporâneas. Até porque se coloca como herdeira das tradições quando acrescenta o tempero da catira (ritmo do Centro-Oeste) na música “Multidão”, sexta do disco.
Na entrevista que se segue, Nay Portella fala sobre a relação com Goiânia, explica o porquê decidiu pôr som da chuva nas faixas em "Garoa" e revela escolhas estéticas que fazem parte da obra. Diz ainda que sentiu necessidade durante a pesquisa para criá-la de conhecer o Brasil desde o maestro Heitor Villa-Lobos. Leia os melhores momentos do bate-papo:
Escolhi a percussão para ocupar o centro das músicas de “Garoa”. A partir dela, todos os arranjos foram pensados Nau Porttela, cantora e compositora
Diário da Manhã – É preciso sair de Goiânia para fazer sucesso?
Nay Porttela – Goiânia é “coisa de umbigo” para mim, sabe? Constrói minha essência, é onde me inspiro, fico de pé no chão e crio as canções. Hoje, eu entendo que não preciso estar num lugar específico para que minha música alcance as pessoas. Com o streaming, a música chega muito rápido a qualquer um com acesso à internet, no mundo todo. Em abril, fiz um feat com a REB (cantora francesa), em Paris, enquanto eu estava em Goiânia. Nos comunicamos pelo WhatsApp. Foi uma experiência muito intensa, como se eu estivesse lá na França e ela aqui no meu país Goiás (risos). Isso é essencial para a música, como manifestação artística coletiva: buscar oportunidades e conexões culturais diversas. Agora em junho, estive no Pitch do WME, em São Paulo, representando Goiás no maior evento de mulheres da música do Brasil, onde meu trabalho foi apresentado a mais de 30 curadoras da indústria musical. Independentemente de onde eu esteja, a música vai além e ganha um espaço próprio quando eu consigo me comunicar.
DM – “Garoa” mantém som da chuva em quase todas as faixas. O que te motivou a isso?
Nay – O som ao fundo sempre está presente em minhas músicas desde o Nay Vibes, meu trabalho de intérprete, que tem ao fundo som de pássaros, que curiosamente aparecia durante as gravações de algumas faixas. Já em "Viradela", meu primeiro disco, o significado do título (o vento que sopra do mar para terra) me inspirou a gravar ao fundo o som do mar em quase todas as faixas. Agora, em "Garoa", o significado (chuva fina) também motivou o som ao fundo das gravações, que por sorte foram feitas no período de chuvas em Goiânia, trazendo a sensação de calma e contemplação, que é central para o tema do autoconhecimento presente em todo o álbum. Eu quero que esses sons ao fundo ajudem a conectar o ouvinte à mensagem que quero transmitir com aquela canção.
DM – Embora tenha uma acentuação indie, “Garoa” nos traz ainda uma musicalidade com traços da música popular brasileira. Como chegou a esse som minimalista?
Nay – Chegar ao som minimalista de "Garoa" foi um processo natural depois de "Viradela", onde fundi todas as minhas influências musicais, numa mistura de gêneros e cada faixa tem estilo diferente. “Garoa” vem mais definido e segue a linha minimalista abraçando a nossa cultura, na busca pela identidade brasileira na arte. Na bossa nova foi que comecei na música profissionalmente, inspirada por Nara Leão, Alaíde Costa, Astrud Gilberto. Então, o samba veio da minha ambição em conhecer o Brasil profundamente. Foi aí que conheci a Nilze Carvalho, que cantou comigo no meu primeiro disco. Um sonho realizado. Aprendi muito com esses gêneros, que são a base das minhas composições — e mais importante foi o de utilizar poucos elementos como base e manter a estética "clean", com o foco na mensagem e na palavra cantada, que eu tanto valorizo nas minhas interpretações.
DM – Por que os arranjos de “Garoa” foram pensados a partir da perspectiva rítmica?
Nay – Quis criar algo que celebrasse a música popular brasileira, o samba, a bossa nova, enquanto incorporava elementos contemporâneos. O ritmo é a prova das riquezas do populário brasileiro. Então, escolhi a percussão para ocupar o centro das músicas de “Garoa”. A partir dela, todos os arranjos foram pensados. Na pesquisa para construir o álbum nasceu dentro de mim uma ambição em conhecer o Brasil desde Villa-Lobos. Percebi que a simplicidade do som permitia que as letras e as emoções fossem o foco principal.
DM – Como anda Nay Portella hoje?
Nay – Estou em um contínuo processo de crescimento e descoberta. Música é minha missão aqui na Terra. É com a música que eu me comunico, conheço as pessoas, faço amizades e parcerias. A música me deu essa porta de independência do protagonismo no que eu faço. Cada novo projeto, como “Garoa”, reflete uma etapa dessa caminhada, com novas percepções e experiências. Vejo a música como uma grande porta que me conecta comigo mesma, com o mundo e com as pessoas.
DM – Como formação em Design de Moda te ajudou a construir aspecto visual do disco?
Nay – Antes de me comunicar através da música, a moda sempre foi a maneira de me comunicar com o outro. Desde criança, me sentia diferente. Nunca gostei de usar o que estava na moda. Customizava minhas roupas e sapatos para me destacar entre os coleguinhas. A música é para mim uma manifestação artística muito além de ritmo e instrumento. É uma forma de me comunicar. E a parte estética caminhou junto. O visual é muito importante pra mim. É uma extensão da minha arte, potencializando os sentidos das canções. Neste trabalho, tive o privilégio de contar com o fotógrafo baiano Renan Benedito, que trouxe um olhar artístico para o visual de "Garoa".
A música é para mim uma manifestação artística muito além de ritmo e instrumento. É uma forma de me comunica Nay Porttela, cantora e compositora
DM – Uma certa indústria cultural tenta reduzir Centro-Oeste ao sertanejo. Por que despontou no cenário brasileiro nos anos 2010 produzindo sonoridade identificada com bossa nova?
Nay – Eu nunca fui uma coisa só. Tudo que canto faz parte de mim. Não acho que só porque sempre vivi em Goiânia eu tenho que cantar determinado estilo de música. Quero cantar toda música que faça a gente se sentir mais livre, que ensine a aceitar tudo. O que eu faço é tentar enxergar fora do meu contexto. É valorizar outras vidas, outras trajetórias. Algo não tão comum a uma garota de Goiânia.
DM – Você declarou certa vez que sempre ouviu de tudo. Como artistas tão díspares te ajudaram a compreender diversidade musical?
Nay – Eu cresci ouvindo música de vários gêneros e culturas. Essa mistura formou linguagem muito familiar e natural para mim. Como artista, sinto liberdade de passear por diferentes gêneros. Acho que essa diversidade musical me ajudou muito a desenvolver linguagem mais coloquial. É uma qualidade de comunicação mesmo, como cantora, a clareza ao falar, ao cantar, a valorização da palavra cantada. A voz é o único instrumento que articula palavras. Sempre privilegiei muito a palavra cantada com o que é dito. Como Mário de Andrade disse, “tudo isso está aí para ser estudado e inspirar formas artísticas”.