Uma camada de vidro estilhaçado cobria as ruas de Berlim depois da investida nazista contra judeus, na virada do dia 9 de dezembro de 1938. Tal episódio, que ficou conhecido como Noite dos cristais, tirou a vida de 91 pessoas e feriu cerca de 30 mil. Alguns meses após o atentado, e menos de 5 anos antes morrer, a pintora Charlotte Salomon deixava a cidade em busca de exílio no sul da França. Na ocasião, ela tinha apenas 21 anos, e estudava na Escola de Belas Artes de Berlim, controlada pelo nazismo. Além dela, pelo menos outros 32 pintores tiveram a vida arrancada pelo extremismo de uma nação que há quase 80 anos via-se encantada pela retórica de um homem chamado Adolf Hitler. Mais de 60 milhões de pessoas morreram na Segunda Guerra.
Em outubro de 1943, a pintora Charlotte Salomon foi capturada, levada para Auschwitz, e intoxicada até a morte, junto com a criança que carregava na barriga há cinco meses. Além dela, também foram assassinados os pintores Vladimir Baranov-Rossine, Bedřich Fritta, Adolf Behrman, Else Berg, Abraham Berline, Menachem Birnbaum, Špiro Bocarić, Josef Čapek, Aniela Cukier, Jakub Cytryn, István Farkas, Adolphe Féder, Stefan Filipkiewicz, Samuel Finkelstein, Otto Freundlich, Max Jacob, Rudolf Levy, Tina Morpurgo, Arno Nadel, František Mořic Nágl, Felix Nussbaum, Daniel Ozmo, Jan Rubczak, Moshe Rynecki, Malva Schalek, Mommie Schwarz, Natan Spigel, ErnőTibor, Symche Trachter, Mirko Virius, Julie Wolfthorn e Stanislav Zhukovsky.
CRISTIANISMO DISTORCIDO
No meio artístico, o extremismo não encurtou o legado apenas dos pintores. Não chegamos a citar os profissionais da fotografia, música, artes cênicas, entre outros. Passados 73 anos do fim da Guerra, pouco restou dos milhões de pessoas que apoiam as ideias de Hitler, que acreditava na supremacia de uma raça. Os sobreviventes e descendentes daquele massacre ainda carregam na memória os horrores possibilitados pelo nazismo e pelo fascismo. Adolf Hitler cresceu numa família influenciada por valores cristãos. Seus pais eram católicos, vertente que ele abandonou para apoiar o Movimento Cristão Alemão, cujos objetivos eram fundir cristianismo e nazismo, disseminando a crença em um Cristo ariano através do racismo e do antissemitismo.
Os ensinamentos cristãos, que em suma pregam amor, solidariedade e fraternidade, não foram suficientes para dissuadir as ambições sanguinárias de Hitler, pois, segundo a historiadora Susannah Heschel, no livro The Aryan Jesus, ele acreditava numa visão totalitária, que não abre espaço para a diversidade natural dos seres humanos, que possuem história, cultura e antepassados de origens heterogêneas. “Meus sentimentos, como Cristão, mostra-me meu Deus e Salvador como um lutador... Como Cristão... eu tenho o dever de ser um guerreiro pela justiça e verdade”, declarou ele para uma multidão na cidade de Munique, pouco antes de assumir o cargo de chanceler da Alemanha em 1933. Depois de chegar ao poder, mesmo apoiando publicamente o cristianismo, passou a diminuir a influência da religião na vida pública.
“VIDA OU TEATRO”
Charlotte Salomon nasceu em Berlim, no dia 16 de abril de 1917. Os nazistas chegaram ao poder na Alemanha quando a artista tinha 16 anos. Nesse período, ela passou a deixar de frequentar a escola, optando pela reclusão em sua casa. Na época, a participação de judeus no meio acadêmico foi restrita a 1,5% das vagas em universidades. Mesmo assim, ela conseguiu entrar para a Escola de Belas Artes de Berlim. Ao fugir da Alemanha, ficou abrigada na casa dos avós, na França. Sua mãe cometeu suicídio, e sua avó tentou se enforcar pela primeira vez. Durante os 18 meses que passou exilada na França, ela produziu uma série de pinturas em guache e aquarela. De cunho autobiográfico, o resultado desse esforço recebeu o título de ‘Vida ou teatro?’, e é considerada sua obra prima.
De acordo com a matéria ‘Porque votamos em Hitler’, publicada no último dia 8 no jornal El País, as notícias falsas e a posturas absurdistas do ditador nortearam suas campanhas políticas. “Hitler usava um linguajar simples, espalhava fake news, e os jornais adoravam sugerir que muito do que ele dizia era absurdo. Hitler era politicamente incorreto de propósito, o que o tornava mais autêntico aos olhos dos eleitores”, conta o autor Oliver Stuenkel. Várias outras pessoas da família de Charlotte cometeram suicídio. Além de sua mãe e avó, a tia, a bisavó, o tio avô, e os sobrinhos de sua avó também tiraram a própria vida em meio ao caos da segunda guerra. A história narrada da vida da artista, o livro ‘Charlotte’, de David Foenkinos, foi publicado em 2014, e rendeu uma soma de 500 mil exemplares vendidos. A obra chegou ao Brasil em 2017.