Erros no sistema de saúde no Brasil matam cerca de 148 pessoas por dia, segundo pesquisa divulgada pelo 2º Anuário de Segurança Assistencial Hospitalar no Brasil, produzido pelo IESS (Instituto de Estudos de Saúde Suplementar) e pelo Instituto de Pesquisa Feluma, da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Ao todo, 54.076 pacientes perderam a vida por essa razão em 2017. O número se compara aos de mortes violentas, cerca de 175 por dia, registradas no mesmo período.
Na esteira desses dados, o médico, pesquisador e jornalista Atul Gawande, nos EUA, aponta que 40% dos pacientes coronários recebem tratamento inadequado ou incompleto; 60% dos pacientes com asma e AVC passam pela mesma situação. Dois milhões de pessoas adquirem infecção hospitalar, porque alguém da estrutura não observou regras básicas de higiene.
Importante destacar que, de maneira equivocada, chamamos de erro médico todas as intercorrências, falhas e complicações presentes na seara da prestação de serviços médicos hospitalares. Vale ressaltar que a esmagadora doutrina pátria considera erro médico desde o erro na administração de medicamentos por equipe de enfermagem até a falha técnica em um procedimento cirúrgico ou erro de diagnóstico.
Não obstante, observando-se a amplitude semântica do termo e os fatos, constata-se que os erros médicos são normalmente sistêmicos e não envolvem apenas do médico. Existe uma equipe de enfermeiros, auxiliares, nutricionistas, fisioterapeutas, farmacêuticos e assistentes, que atuam no sistema de saúde. Estatisticamente, as maiores complicações hospitalares ainda se relacionam a medicamentos ministrados erroneamente, alguns inclusive sem serem percebidos pelos pacientes e seus familiares e outras que levam até a morte.
Toda vez que se verifica um erro, está-se falando de algo maior que o fato em si. O erro de um médico, por exemplo, que consista na troca de um membro bilateral no momento de uma cirurgia (ao invés de ser operado o braço direito, operara-se o braço esquerdo) pode ser um indicativo de erro sistêmico, em geral. Ilustrando-se: há alguém que recepcionou esse paciente e fez a documentação na internação, alguém que verificou se havia autorização do plano de saúde, alguém que preparou o campo cirúrgico, alguém que separou todos os instrumentos, o próprio paciente enquanto acordado, o anestesiologista, o cirurgião. Será que houve um check list cirúrgico? Será que cada qual fez seu papel com responsabilidade, considerando que seu trabalho poderia afetar todos os outros subsequentes?
Outro problema de conjuntura que afeta a vida do profissional de saúde e, especialmente a do médico, é a rotina estressante e as jornadas exaustivas. Existem médicos, que em decorrência dos baixos salários ou honorários que recebem, que acabam realizando sete, oito ou mais cirurgias em um dia, com o objetivo de garantir um padrão de remuneração alto. Este profissional está se expondo a um nível de estresse muito grande e também a um risco de cometer algum equívoco ou deslize, que comprometa a vida do paciente. Além da sua própria carreira.
É normal que os profissionais realizem atendimentos em série de pacientes no mesmo dia, em lugares diferentes, intercalados com procedimentos cirúrgicos. E, assim, esses profissionais vivem abalos físicos, emocionais e psicológicos. Aumentando o risco de cometer um erro em procedimentos ou indicação de medicamento, por exemplo.
Há tratamentos para milhares de condições que um ser humano pode ter, mais 4 mil tipos de procedimentos cirúrgicos e em torno de 6 mil drogas que os médicos podem prescrever. Mas, um único médico não consegue ter todas essas informações para tratar seu paciente.
Hoje os médicos buscam as especializações e as hiper especializações. Para se ter uma ideia, o tratamento de um paciente hospitalizado normalmente é realizado por 10 profissionais: médicos, enfermeiros, especialistas, fisioterapeutas, nutricionistas, auxiliares de enfermagem e psicólogos. Todos esses profissionais são responsáveis pelo paciente e interferem diretamente no resultado do tratamento. Se a menor dúvida, há médicos espetaculares, quase sobre-humanos em relação a sua expertise; mas, isso não é suficiente.
Seria possível evitar alguns erros? Sim, através de um árduo trabalho de prevenção. Os protocolos médicos são essenciais para se evitar erros médicos. Os protocolos são criados por juntas de profissionais especializados em determinados procedimentos – levam em consideração as evidências, artigos científicos e possuem fundamentação dentro de determinado tempo – isso porque devem ser constantemente atualizados, haja vista a frequente inserção de novas tecnologias em equipamentos e medicamentos.
Juridicamente, os protocolos são norteadores. Se observados, e em havendo uma complicação prevista em literatura, dificilmente uma ação será julgada procedente pelos magistrados. E, na hipótese de o médico não ter observado os protocolos por negligência, as chances de uma condenação aumentam diante de um dano ao paciente. A regra deve ser observar os protocolos e segui-los. A exceção precisará ser sempre justificada.
Conhecer o erro, portanto, falar sobre ele, discutir suas causas, não pode servir unicamente para a punição dos envolvidos, mas sim para que se realizem registros estatísticos sérios que permitam a adoção de mudanças para que se impeça outros de errarem. À parte as indenizações, o erro deve ser um condutor para a renovação e consequente reavaliação de processos internos e de formação dos profissionais de saúde. Essa é a chave para mudanças: reconhecimento das falhas e busca de soluções em conjunto.
(Sandra Franco é consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, presidente da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar da OAB de São José dos Campos (SP), presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde, membro do Comitê de Ética da UNESP para pesquisa em seres humanos e Doutoranda em Saúde Pública)